domingo, 31 de maio de 2020

Cangaceiros 51



Gerônimo e o bando saem do centro da cidade e cavalgam por ruas calçadas de paralelepípedos até entrar em outra de areia frouxa, de um bairro mais pobre, e deparam-se com uma cena inusitada onde dois homens brancos, altos e fortes agridem uma mulher negra, nova, bonita e a filha de aproximadamente quinze anos, quase uma mocinha refeita com cintura de violão e ancas largas. Eles as impedem de passar e as maltratam puxando-as pelos cabelos. E as esculhambam com palavrões de ofensa racista.

–– Negra safada! Por aqui tu não passarás! – diz um – puxando a mulher pelos cabelos.
–– A negrinha também não! O que vocês estão pensando? Que podem circular livremente pela cidade? Vocês teriam que estar amarradas num tronco, ou servindo na fazenda de meu pai! – diz o outro que atalha a mocinha com tapas e pontapés.
–– Acudam-me! Pelo amor de Deus! Moço pelo bem de Nossa Senhora não faça isso! Façam o que quiserem comigo, mas deixem minha filha em paz. – grita a mulher, mas não aparece uma vivente alma para ajuda-la.

A gritaria é grande e elas a cada vez que pedem ajuda eles batem mais e xingam, com ódio pura e simplesmente por causa da cor da pele das vítimas. Como se isso os ofendesse.

Dentro de casa as pessoas faltam se escanchar umas nas outras nos pés das portas e janelas de duas bandas para olharem através das frestas. Mas ninguém se atreve a socorrê-las. Cochicham e balbuciam palavras de repúdio, mas não há sequer uma atitude.

–– Gerônimo tu estás ouvindo isso? – pergunta Calango.
–– Espera! Espera! É nessa ruazinha aqui!
–– Socorro! Socorro! Acudam! – berra a mulher enquanto os cães das casas mais próximas latem, mas eles, os agressores, não ligam.
–– Calango! Vamos cerca-los e deixe que eu resolvo isso. Não interfiram. Já faz tempo que não dou uns bofetes na cara de cabra safado.
–– Eu sou negro! Venham bater em mim que sou do teu tamanho! Seus cabras sem vergonha!
–– Pessoas como tu e elas são sempre inferiores a pessoas como eu e ele. Tem que ficar numa jaula ou em correntes. Não servem para nada, a não ser para trabalhar para nós, os brancos de olhos azuis – diz um.
–– Todo cachorro que anda em bando quer ser mais corajoso. Vou te esfolar negro safado – rebate o outro.
–– Quer uma ajuda aí Gerônimo? – indaga um dos cangaceiros ainda montado no cavalo que observa as ofensas.
–– Não precisa! Agora é pessoal e se tiver uma coisa que não aceito é covardia e desonra – Gerônimo tira o chapéu de couro, põe na lua da sela de seu cavalo preto como a graúna e enfrenta os dois homens numa briga corporal – desses aqui, não só vou cortar as orelhas, irei comê-las como tira-gosto de cachaça. Gerônimo retira de debaixo da sela um chiqueirador feito de umbigo de boi curtido, com cabo de madeira e dá a primeira chicotada laçando um pelo pescoço. Arrasta-o para perto de si e esmurra no rosto até o mel descer. Deixa-o em poucos segundos inconsciente, o outro arrasta uma faca e golpeia no vácuo. Gerônimo esquiva-se de várias investidas, mas o cabra também é bom de briga e consegue acertar a tábua do queixo do cangaceiro. O soco foi tão forte que o derruba e faz sangue no canto da boca.
–– Levanta-te! Quero te mostrar quem manda aqui. Tu és grande, mas não é dois.

Entre socos e pontapés, o homem ainda com a faca na mão direita, acerta outro murro no rosto do cangaceiro e nesse instante tenta furá-lo com a peixeira, mas num descuido, Gerônimo dá-lhe uma rasteira e o derruba. Depois como um animal raivoso, bate tanto na cara do homem que ele fica irreconhecível.

–– Vamos ver se teu sangue é de outra cor para ser tão diferente. Não tenho o coração cheio de ódio, mas não tolero injustiças. Isso também não é justiça é castigo – afirma o cangaceiro.

O homem que dormiu por uns minutos, quase nocauteado pelos tabefes de Gerônimo, acorda, balança a cabeça ainda grogue e se levanta cambaleando.

–– Teu sangue não é azul! Escroto!
–– Oxente! Nem o teu! É exatamente isso que vou verificar agora. Eu sou pai. E um pai de verdade não pode deixar uma mulher e uma criança ser maltratada dessa forma. Temos que ter orgulho da cor. Gerônimo saca a peixeira e enfia entre a clavícula e o pé do cangote. O sangue vermelho espirra e lava o chão enquanto o homem esperneia e desvanece sem vida.
A mulher abraça a filha e comprime contra o peito, encostada na parede. O outro homem vendo que não tem escapatória ajoelha-se e implora para não ser morto.
–– Não me mata!
–– Tem uma parte de ti que levarei comigo! Não irei te matar! – Gerônimo aproxima-se do homem que agora já não é tão macho e puxa-o pelo pescoço e arranca a orelha com uma mordida. O grito de dor e medo ecoa na ruela. O cangaceiro sai de perto dele mastigando enquanto o sangue escorre.
–– Moço como é seu nome? – pergunta a mulher que continua quase imóvel abraçada com a filha.
–– Gerônimo! O nome dele é Gerônimo Senhora! – diz Calango.
–– Um homem que se presa, não destrói aquilo que pode conquistar.
–– Obrigado Gerônimo! – agradece a mulher.
––De nada Senhora! Vão embora agora! E boa sorte!
–– E se tu ainda incomodares essa mulher e a filha dela, nós voltaremos aqui para te capar. Vai embora cachorro da mulesta! - Ameaça Calango!
–– Vamos embora! – ordena Gerônimo.
–– Gerônimo! O bicho véi é bom no bofete, viu! – Afirma Calango provocando o amigo.

Gerônimo olha para trás e vê o homem assustado com a mão na orelha, encostado na parede, então puxa as rédeas do animal para a direita, espora o cavalo e galopa até ele.

–– Espera aí! – Quando Gerônimo chega a uma distância de dois metros, saca a arma e atira na perna direita, na coxa do indivíduo. E deixa-o lá choramingando.
–– Agora podemos ir. A orelha dele estava com um gosto horrível! Além do mais, vai sarar rápido. Com uma bala na perna ele jamais me esquecerá. Tragam os cavalos! Eles não precisarão deles.
(...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário