domingo, 10 de maio de 2020

Cangaceiros 20


Os cangaceiros apontam as armas e levam o presidente da câmara até o acampamento.

Gerônimo encontra-se nesse momento sentado à sombra da casa de taipa, segurando seu filho ao lado da companheira, fazendo um dengo em momento raro. Os homens estão no topo da montanha mantendo vigilância enquanto outros se aproximam do chefe para avisá-lo de que a tropa está trazendo alguém.

–– Gerônimo, os homens estão chegando com um prisioneiro.
–– Hum! Deixa vir.

A mulher franzina de Cancão, um dos homens da maior confiança de Gerônimo, entrega-lhe uma cuia de farinha e por cima uns dez pequis cozidos. Com a outra mão entrega também um caneco com um punhado de sal.

–– Eita Cancão! Não tem coisa melhor do que roer uns caroços de pequi depois do almoço. Isso é que dá sustança a homem. E além do mais, serve pra curar muitos males do corpo. Obrigado, viu, Maria?
–– De nada chefe.
–– Maria, aproveita e traz uns pedaços de rapadura, pro Gerônimo tirar o gosto de sal da boca – ordena Cancão.
–– Ah, isso não. Deixe que eu mesma trago a rapadura e a cabaça de água – finaliza a companheira de Gerônimo.
O bebê começa a chorar e a mãe o pega nos braços, conforta-o e o leva para dentro de casa. Os homens já são avistados bem perto e Gerônimo levanta-se para recebê-los.
–– Olha aí chefe. Encontramos esse homem numa cabana, amarrado, com fome e sede.
–– Quem és tu, cabra? – indaga Gerônimo.
–– Eu sou o presidente da Câmara de Olho D’Água.
–– Sei. E como tu foste parar nessas brenhas?
–– Eu fui sequestrado pelos homens do Coronel Messias dos Reis.
–– Cancão vem cá. Esse tal de Coronel Messias não é o pai daquele infeliz que eu cortei a orelha dele?
–– Deve ser.
–– Então, porque tu foste levado para a cabana?
–– É o seguinte: eu acho que a princípio era para me matarem. Depois o sujeito chamado Lucas, o braço direito do Coronel revelou que era para atrapalhar a eleição, pelo fato de eu ser o mais votado depois do prefeito.
–– E porque ele não te matou?
–– Ele é o carrasco perverso do Coronel, mas também é ganancioso. Fez uma proposta para mim.
–– Que proposta?
–– O trato era um golpe que ele iria aplicar no Coronel.
–– Como é que é? Desembucha, vai.
–– Para me manter vivo, eu teria que dar a ele todos os meus bens de papel passado e tudo e ele iria trazer comida e água todos os dias, me manteria em cativeiro, depois da eleição eu teria que ir embora para sempre da cidade, mas o Coronel não poderia saber de nada, concordei e então, ele mandou os jagunços para esperar lá distante, no carro, deu dois tiros no chão para parecer que eu havia morrido e foi embora.
–– E quando ele voltará para te ver na cabana?
–– Amanhã de manhã, muito provavelmente.
–– Tem mais coisa. Foi ele quem matou a filha de Maroca e o filho de um tal de Manoel Espicha Couro. Ele é um assassino sanguinário. O Senhor soube dessa história?
–– Soube. Mas quero ter certeza de que tu estás falando a verdade, por que se for assim mesmo, do jeito que tu conta, agora essa briga é nossa.
–– Ele é quem elimina as pessoas a mando do Coronel. Quando o Senhor for à cidade faça uma visita ao Padre Lauro. Ele sabe mais das coisas do que eu.
–– Tu és amigo do Padre Lauro?
–– Claro! Ele é um dos nossos maiores aliados. Apoia e orienta o prefeito em tudo, além de ser o conselheiro dele. Se o Padre Lauro contar a metade do que ele sabe, o Senhor irá ficar abismado.
–– O Padre Lauro virá aqui em três dias para batizar meu filho. E aí tu confirmarás tudo que disseste.
–– Confirmo sim, Senhor.
–– Cancão, amanhã tu irás montar uma tocaia para trazer aqui esse vagabundo do Lucas. Quando ele chegar à cabana, pegue o homem e traga-o para mim.
–– Sim Senhor.
–– Calango!
–– Sim Capitão!
–– Chame dois homens e vão à casa do Manoel Espicha Couro agora. Diga-lhe para ele vir para cá urgente. Mas não diga do que se trata, apenas que é importante. Pegue os cavalos no curral e vá homem, avexado.
–– Sim Senhor.
–– Presidente tu já foi eleito quantas vezes?
–– Estou no terceiro mandato. E na próxima eleição serei candidato a prefeito.
–– É. Tu pareces que é benquisto pelo povo. O problema é que agora nosso acampamento está comprometido.
–– Por quê?
–– Porque antes ninguém ou quase ninguém sabia onde nos encontrar, a não ser o Padre Lauro.
–– Mas eu não tenho intenção de ti prejudicar.
–– Eu sei. Mas a gente fica sempre com a mosca atrás da orelha.
–– Posso te fazer uma proposta?
–– Sim. Pode.
–– Se tu quiseres me ajudar e ajudar teu povo, a gente pode somar forças.
–– Oxente! E como é isso, homem de Deus?
–– Na cidade tem escolas, hospital, água encanada, saneamento básico e...
–– Tem o que rapaz? Fale de modo que eu entenda. Sou um homem do mato. Não sou tão letrado assim.
–– Quero dizer que, eu na condição de homem público, e presidente da Câmara, posso garantir a sua cidadania, ou seja, tirar seus documentos, dar moradia digna e até emprego. Tenho até um terreno mais afastado com muitos hectares de terra onde vocês poderão plantar milho, feijão e mandioca. Mas só se vocês quiserem sair dessa caatinga.
–– Eu não tenho muita leitura não e nem meu povo. O pouco que aprendemos aqui foi com a ajuda do Padre Lauro, que é irmão da minha mulher e dispendeu um pouco de seu tempo e muitos livros.
–– Ah, então ele é seu cunhado.
–– Sim, sim. Mas presidente, em troca de que tu farias isso para nós?
–– Primeiro que já tenho uma dívida com vocês por terem salvo minha vida e eu estou muito agradecido. Segundo que, como político, preciso de votos de confiança.
–– Entendi. Presidente, meu povo não sabe votar. Não conhece essa política de vocês e não sabe receber ordens que não sejam as minhas.
–– Bem, tenho uma equipe que poderá alfabetizá-los, ensiná-los a ler e escrever e darei todo material necessário para isso.
–– Tô te lendo! Tu és esperto! E quanto vamos ficar devendo por essa bondade e favores?
–– Bondade sim, favor não. Todo cidadão tem direito à educação gratuita.
–– Mesmo assim ficaríamos em débito contigo.
–– Não, não, não. Eu sou quem estou em débito. Eu disponibilizo a equipe para ensiná-los a ler, escrever e votar e prometo que, dentro dos limites da cidade, construiremos uma vila só para vocês, além do mais, tu continuarás a tomares as decisões que quiseres.
–– Essa conversa tem rumo. Todo dia penso no futuro dessas crianças, mas, nem o Padre nunca propôs algo assim. É certo que ele ajuda com parte da comestiva e remédios.
–– Estamos no inicio do mês de junho e a eleição é em novembro. O que tu me diz? Ah, quero perguntar-te. São quantos homens e mulheres aqui?
–– Noventa homens e sessenta mulheres e mais as crianças.
–– Então o que teríamos aqui seriam cento e cinquenta eleitores, digo cento e cinquenta cidadãos de bem. O que acha da minha proposta? Se quiseres mando redigir um documento registrado em cartório com a minha e a sua assinatura. Um contrato de gaveta.
–– Homem não carece disso não. Minha palavra vale mais que papel de cartório. Além do mais, se eu aceitar tua proposta, e tu não a cumprir, tu não terá lugar onde se esconder. Vou te buscar debaixo da saia de tua mãe e mato tu e ela.
–– E depende de que então?
–– Tenho que reunir meu povo para saber. E outra, tenho que ouvir o Padre Lauro. Ele será o avalista caso todos estejam de acordo.
–– É bom tomarmos decisões rápidas, porque o tempo urge.
–– Não me aperreie não. Tudo tem o tempo certo. Quer ver uma coisa?
–– Sim.
–– Te botaram no meu caminho e agora estamos falando do futuro, de leitura, de aprendizagem, meio de vida e coisa e tal.
–– É verdade. Há males que vem para o bem. Se eu não tivesse sido sequestrado, não estaria aqui e não teria te conhecido.
(...)

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