domingo, 31 de maio de 2020
Cangaceiros 49
Às dez horas da manhã de hoje o sol já é escaldante. As ruas estão desertas nessa manhã. Quase não há movimento na cidade de Olho D’Água, por conta dos arrasta-pés e das festas juninas que vão até altas horas da madrugada. Algumas poucas pessoas transitam cuidando dos seus afazeres. O carro dirigido pelo vereador para na frente da igreja de uma torre só, onde de longe se avista o sino de metal e uma cruz detalhada de bronze. O templo é composto por uma porta de dois metros de altura em madeira entalhada e quando aberta, avista-se o grande Crucifixo feito da madeira de cedro ao fundo, no altar. Um mendigo com vestimentas esfarrapadas ainda dorme na calçada e outro, provavelmente cego, com roupas sujas e barba por fazer, está ao lado e mantém a mão estendida, esperando pela boa vontade de alguém que lhes dê uma esmola. Do lado esquerdo e do lado direito mais duas portas dão acesso. O adro tem poucos metros de largura e comprimento e mais três degraus de pedra sobrepostas até o carro estacionado. Duas palmeiras imperiais ladeiam as entradas, embelezando a construção antiga com arquitetura colonial. A Casa Paroquial de poucos cômodos com a pintura branca gasta pelo tempo fica ao lado. A pracinha arborizada e com quatro postes de madeira ostentam lampiões a querosene, um em cada canto e um no centro para mais tarde, à boquinha da noite, serem acesos pelo vigia. A vaca malhada lá distante, pasta no canteiro. De um lado da rua, casas caiadas com muretas de proteção e plantas esgalhadas para fora com flores; acima dos telhados de ambos os lados sobressaem copas dos pés de mangas, cajus, coqueiros e oitis - algumas frutas estão comidas pelos pássaros - na outra rua lateral, deixaram uma carroça de madeira, apoiada na calçada, sem o burro, e embaixo dela, um cachorro branco está deitado à sombra, desconfiado com o tropel dos cavalos no calçamento de pedras e o movimento dos cangaceiros e, com os olhos miúdos de preguiça observa com a cabeça entre as patas dianteiras. Entre uma casa e outra há bodegas, bares, barbearias e lojinhas de moda e de tecidos. Mais lá na ponta da rua, uma carga de cana no lombo do jumento cardão é entregue ao dono da garapeira. As barracas de palha da quermesse ainda estão de pé para à noite seus donos venderem comidas típicas e bebidas. Há também na praça, os cordões de bandeirolas coloridas amarrados com barbantes nos mastros de madeira onde os quadrilheiros se apresentarão logo mais.
Quinze homens escoltam o Padre e o vereador até as portas da Igreja e que agora saem do carro. Gerônimo desmonta e é acompanhado por Calango.
–– Oxente! Eu estou vendo dois homens se beijando naquele banco da praça, ou estou ficando doido? Será que estou é ruim da vista? – indaga Calango olhando para os dois, esfregando os olhos com as duas mãos enquanto caminha lado a lado com o Capitão.
–– Quem se importa com a vida dos outros esquece de cuidar da sua. Sabias? – responde Gerônimo.
–– Sai de boca que tu não és batom – diz o outro cangaceiro que ouve a pergunta.
–– Calango, eu gosto de mulher. Mas, tem gente para todo gosto no mundo. Alguns homens se satisfazem com jumentas, cabritas ou ovelhas. Nesse caso eu não acho muito certo, mas no caso desses dois que se beijam, mesmo sendo “machos”, por assim dizer, devem se amar. Cada um com seu cada qual. Não digam nada. Deixem-nos serem felizes e se amarem. Não temos nada a ver com isso. Então deixa a vida dos outros em paz. Nossa missão aqui é proteger o Padre e o vereador.
A conversa chega aos ouvidos do Padre, e por estarem pertos também tem uma observação do Pároco.
–– Filhos, Deus criou o homem e a mulher para constituir família e procriar na face da terra, mas as escrituras quando dizem amai uns aos outros, não distingue se é macho ou fêmea, homem ou mulher, preto ou branco. Então o que tem que prevalecer na humanidade é o respeito. Vejam o exemplo da natureza que se reproduz sem pedir opinião de ninguém. Os homens bem que poderiam ser assim para viver em harmonia. Tudo começa com essa palavra. Não importa a cor da pele, o clero ou o idioma.
–– Padre! Vamos falar de outra coisa! – diz Gerônimo aperreado, sedento e fatigado da viagem por caminhos empoeirados da caatinga.
–– Vamos! Tu não queres entrar?
–– Quero um pouco de água.
–– Então vamos entrar. A casa de Deus cabe todo mundo!
–– Gerônimo! Quero agradecer por tudo! Quero também chegar em casa logo para rever minha família! Estou com uma saudade arretada do meu filho! – diz o vereador.
–– Sim! Não se aperrei não! Vou mandar cinco homens contigo e eles ficarão lá, desde que tu dês lugar aonde eles possam se arranchar.
(...)
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