sábado, 29 de junho de 2019

CANGACEIROS 20




–– Porque antes ninguém ou quase ninguém sabia onde nos encontrar, a não ser o Padre Lauro.
–– Mas eu não tenho intenção de te prejudicar.
–– Eu sei. Mas a gente fica sempre com a mosca atrás da orelha.
–– Posso te fazer uma proposta?
–– Sim. Pode.
–– Se tu quiseres me ajudar e ajudar teu povo, a gente pode somar forças.
–– Oxente! E como é isso, homem de Deus?
–– Na cidade tem escolas, hospital, água encanada, saneamento básico e...
–– Tem o que rapaz? Fale de modo que eu entenda. Sou um homem do mato. Não sou tão letrado assim.
–– Quero dizer que, eu na condição de homem público, e presidente da Câmara, posso garantir a sua cidadania, ou seja, tirar seus documentos, dar moradia digna e até emprego. Tenho até um terreno mais afastado com muitos hectares de terra onde vocês poderão plantar milho, feijão e mandioca. Mas só se vocês quiserem sair dessa caatinga.
–– Eu não tenho muita leitura não e nem meu povo. O pouco que aprendemos aqui foi com a ajuda do Padre Lauro, que é irmão da minha mulher e dispendeu um pouco de seu tempo e muitos livros.
–– Ah, então ele é seu cunhado.
–– Sim, sim. Mas presidente, em troca de que tu farias isso para nós?
–– Primeiro que já tenho uma dívida com vocês por terem  salvo minha vida e eu estou muito agradecido. Segundo que, como político, preciso de votos de confiança.
–– Entendi. Presidente, meu povo não sabe votar. Não conhece essa política de vocês e não sabe receber ordens que não sejam as minhas.
–– Bem, tenho uma equipe que poderá alfabetizá-los, ensiná-los a ler e escrever e darei todo material necessário para isso.
–– Tô te lendo! Tu és esperto! E quanto vamos ficar devendo por essa bondade e favores?
–– Bondade sim, favor não. Todo cidadão tem direito à educação gratuita.
–– Mesmo assim ficaríamos em débito contigo.
–– Não, não, não. Eu sou quem estou em débito. Eu disponibilizo a equipe para ensiná-los a ler, escrever e votar e prometo que, dentro dos limites da cidade, construiremos uma vila só para vocês, além do mais, tu continuarás a tomares as decisões que quiseres.
–– Essa conversa tem rumo. Todo dia penso no futuro dessas crianças, mas, nem o Padre nunca propôs algo assim. É certo que ele ajuda com parte da comestiva e remédios.
–– Estamos no inicio do mês de junho e a eleição é em  novembro. O que tu me diz? Ah, quero perguntar-te. São quantos homens e mulheres aqui?
–– Noventa homens e sessenta mulheres e mais as crianças.
–– Então o que teríamos aqui seriam cento e cinquenta eleitores, digo cento e cinquenta cidadãos de bem. O que acha da minha proposta? Se quiseres mando redigir um documento registrado em cartório com a minha e a sua assinatura. Um contrato de gaveta.
–– Homem não carece disso não. Minha palavra vale mais que papel de cartório. Além do mais, se eu aceitar tua proposta, e tu não a cumprir, tu não terá lugar onde se esconder. Vou te buscar debaixo da saia de tua mãe e mato tu e ela.
–– E depende de que então?
–– Tenho que reunir meu povo para saber. E outra, tenho que ouvir o Padre Lauro. Ele será o avalista caso todos estejam de acordo.
–– É bom tomarmos decisões rápidas, porque o tempo urge.
–– Não me aperreie não. Tudo tem o tempo certo. Quer ver uma coisa?
–– Sim.
–– Te botaram no meu caminho e agora estamos falando do futuro, de leitura, de aprendizagem, meio de vida e coisa e tal.
–– É verdade. Há males que vem para o bem. Se eu não tivesse sido sequestrado, não estaria aqui e não teria te conhecido.

No dia seguinte, antes que os galos cantem e o sol nasça, os cangaceiros tomam café com cuscuz à beira de uma fogueira e partem para fazer a emboscada por ordem de Gerônimo. São seis homens armados que não temem a morte. Eles chegam e se entocam como fantasmas, camuflam-se ao redor da cabana estrategicamente e esperam. O tempo passa. Uma vez ou outra já perto do meio dia, o sol a pino, um deles pega a cabaça de água e passa de mão em mão. Um dos homens que está no ponto mais alto avista o rastro de poeira na estrada de chão lá longe e faz o sinal com um pano branco amarrado na ponta do cano da espingarda.

–– Ele chegou – diz o outro.
–– Quando ele se aproximar da porta da cabana a gente o cerca. Só atirem nas pernas. Isto é, se for necessário. O Capitão mandou levar o homem vivo.
–– Certo.
  E assim é feito.
 –– Não se bula, cabra! Bote as mãos pra riba!
–– O que?
–– Tu estás cercado. Não toques um dedo nas armas.

Vendo que não havia chance de combate ou de revidar à cilada o homem se entrega.

–– Eu me rendo. Não atirem.
–– Gavião, pega as armas dele. Bota as mãos pra trás. Avexado.
–– Tudo bem, mas quem são vocês? Não somos inimigos. O que vocês querem? É dinheiro?
 –– Cala a porra dessa boca. Só obedece que vai ficar tudo bem.
–– Está bom! Está bom!
–– Vamos leva-lo.
–– Vamos!
–– Tinha um homem na cabana. Onde ele está?
–– Tu vais já saber. Caminha. Ligeiro.
–– Cadê o homem?
–– Cala essa maldita boca infeliz! Se o capitão não quisesse te ouvir juro que cortava tua língua.
 –– Que capitão?
  –– Espera ai – diz o cangaceiro chefe desse pequeno bando enquanto quebra um graveto, põe na boca de Lucas e amarra as duas pontas com um pedaço de pano – pronto! Agora tu sabes o que significa alguém dizer “cala a boca”. Os outros caem na gargalhada.

E depois de muito andar, subindo e descendo barrancos, caminhar por trilhas cheias de garranchos, xique-xique e mandacarus que só eles sabem onde vai dar, chegam ao acampamento.
(...)

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