–– Porque antes ninguém ou quase ninguém sabia
onde nos encontrar, a não ser o Padre Lauro.
–– Mas eu não tenho intenção de te prejudicar.
–– Eu sei. Mas a gente fica sempre com a mosca
atrás da orelha.
–– Posso te fazer uma proposta?
–– Sim. Pode.
–– Se tu quiseres me ajudar e ajudar teu povo, a
gente pode somar forças.
–– Oxente! E como é isso, homem de Deus?
–– Na cidade tem escolas, hospital, água
encanada, saneamento básico e...
–– Tem o que rapaz? Fale de modo que eu entenda.
Sou um homem do mato. Não sou tão letrado assim.
–– Quero dizer que, eu na condição de homem
público, e presidente da Câmara, posso garantir a sua cidadania, ou seja, tirar
seus documentos, dar moradia digna e até emprego. Tenho até um terreno mais
afastado com muitos hectares de terra onde vocês poderão plantar milho, feijão
e mandioca. Mas só se vocês quiserem sair dessa caatinga.
–– Eu não tenho muita leitura não e nem meu
povo. O pouco que aprendemos aqui foi com a ajuda do Padre Lauro, que é irmão
da minha mulher e dispendeu um pouco de seu tempo e muitos livros.
–– Ah, então ele é seu cunhado.
–– Sim, sim. Mas presidente, em troca de que tu
farias isso para nós?
–– Primeiro que já tenho uma dívida com vocês
por terem salvo minha vida e eu estou
muito agradecido. Segundo que, como político, preciso de votos de confiança.
–– Entendi. Presidente, meu povo não sabe votar.
Não conhece essa política de vocês e não sabe receber ordens que não sejam as
minhas.
–– Bem, tenho uma equipe que poderá alfabetizá-los,
ensiná-los a ler e escrever e darei todo material necessário para isso.
–– Tô te lendo! Tu és esperto! E quanto vamos
ficar devendo por essa bondade e favores?
–– Bondade sim, favor não. Todo cidadão tem
direito à educação gratuita.
–– Mesmo assim ficaríamos em débito contigo.
–– Não, não, não. Eu sou quem estou em débito.
Eu disponibilizo a equipe para ensiná-los a ler, escrever e votar e prometo
que, dentro dos limites da cidade, construiremos uma vila só para vocês, além
do mais, tu continuarás a tomares as decisões que quiseres.
–– Essa conversa tem rumo. Todo dia penso no
futuro dessas crianças, mas, nem o Padre nunca propôs algo assim. É certo que
ele ajuda com parte da comestiva e remédios.
–– Estamos no inicio do mês de junho e a eleição
é em novembro. O que tu me diz? Ah,
quero perguntar-te. São quantos homens e mulheres aqui?
–– Noventa homens e sessenta mulheres e mais as
crianças.
–– Então o que teríamos aqui seriam cento e
cinquenta eleitores, digo cento e cinquenta cidadãos de bem. O que acha da
minha proposta? Se quiseres mando redigir um documento registrado em cartório
com a minha e a sua assinatura. Um contrato de gaveta.
–– Homem não carece disso não. Minha palavra vale
mais que papel de cartório. Além do mais, se eu aceitar tua proposta, e tu não a
cumprir, tu não terá lugar onde se esconder. Vou te buscar debaixo da saia de
tua mãe e mato tu e ela.
–– E depende de que então?
–– Tenho que reunir meu povo para saber. E
outra, tenho que ouvir o Padre Lauro. Ele será o avalista caso todos estejam de
acordo.
–– É bom tomarmos decisões rápidas, porque o
tempo urge.
–– Não me aperreie não. Tudo tem o tempo certo.
Quer ver uma coisa?
–– Sim.
–– Te botaram no meu caminho e agora estamos
falando do futuro, de leitura, de aprendizagem, meio de vida e coisa e tal.
–– É verdade. Há males que vem para o bem. Se eu
não tivesse sido sequestrado, não estaria aqui e não teria te conhecido.
No dia seguinte, antes que
os galos cantem e o sol nasça, os cangaceiros tomam café com cuscuz à beira de
uma fogueira e partem para fazer a emboscada por ordem de Gerônimo. São seis
homens armados que não temem a morte. Eles chegam e se entocam como fantasmas,
camuflam-se ao redor da cabana estrategicamente e esperam. O tempo passa. Uma
vez ou outra já perto do meio dia, o sol a pino, um deles pega a cabaça de água
e passa de mão em mão. Um dos homens que está no ponto mais alto avista o
rastro de poeira na estrada de chão lá longe e faz o sinal com um pano branco
amarrado na ponta do cano da espingarda.
–– Ele chegou – diz o outro.
–– Quando ele se aproximar da porta da cabana a
gente o cerca. Só atirem nas pernas. Isto é, se for necessário. O Capitão
mandou levar o homem vivo.
–– Certo.
E assim é feito.
–– Não
se bula, cabra! Bote as mãos pra riba!
–– O que?
–– Tu estás cercado. Não toques um dedo nas
armas.
Vendo que não havia chance
de combate ou de revidar à cilada o homem se entrega.
–– Eu me rendo. Não atirem.
–– Gavião, pega as armas dele. Bota as mãos pra
trás. Avexado.
–– Tudo bem, mas quem são vocês? Não somos
inimigos. O que vocês querem? É dinheiro?
–– Cala
a porra dessa boca. Só obedece que vai ficar tudo bem.
–– Está bom! Está bom!
–– Vamos leva-lo.
–– Vamos!
–– Tinha um homem na cabana. Onde ele está?
–– Tu vais já saber. Caminha. Ligeiro.
–– Cadê o homem?
–– Cala essa maldita boca infeliz! Se o capitão
não quisesse te ouvir juro que cortava tua língua.
–– Que capitão?
–– Espera
ai – diz o cangaceiro chefe desse pequeno bando enquanto quebra um graveto, põe
na boca de Lucas e amarra as duas pontas com um pedaço de pano – pronto! Agora
tu sabes o que significa alguém dizer “cala a boca”. Os outros caem na
gargalhada.
E depois de muito andar,
subindo e descendo barrancos, caminhar por trilhas cheias de garranchos,
xique-xique e mandacarus que só eles sabem onde vai dar, chegam ao acampamento.
(...)