sábado, 29 de junho de 2019

CANGACEIROS 20




–– Porque antes ninguém ou quase ninguém sabia onde nos encontrar, a não ser o Padre Lauro.
–– Mas eu não tenho intenção de te prejudicar.
–– Eu sei. Mas a gente fica sempre com a mosca atrás da orelha.
–– Posso te fazer uma proposta?
–– Sim. Pode.
–– Se tu quiseres me ajudar e ajudar teu povo, a gente pode somar forças.
–– Oxente! E como é isso, homem de Deus?
–– Na cidade tem escolas, hospital, água encanada, saneamento básico e...
–– Tem o que rapaz? Fale de modo que eu entenda. Sou um homem do mato. Não sou tão letrado assim.
–– Quero dizer que, eu na condição de homem público, e presidente da Câmara, posso garantir a sua cidadania, ou seja, tirar seus documentos, dar moradia digna e até emprego. Tenho até um terreno mais afastado com muitos hectares de terra onde vocês poderão plantar milho, feijão e mandioca. Mas só se vocês quiserem sair dessa caatinga.
–– Eu não tenho muita leitura não e nem meu povo. O pouco que aprendemos aqui foi com a ajuda do Padre Lauro, que é irmão da minha mulher e dispendeu um pouco de seu tempo e muitos livros.
–– Ah, então ele é seu cunhado.
–– Sim, sim. Mas presidente, em troca de que tu farias isso para nós?
–– Primeiro que já tenho uma dívida com vocês por terem  salvo minha vida e eu estou muito agradecido. Segundo que, como político, preciso de votos de confiança.
–– Entendi. Presidente, meu povo não sabe votar. Não conhece essa política de vocês e não sabe receber ordens que não sejam as minhas.
–– Bem, tenho uma equipe que poderá alfabetizá-los, ensiná-los a ler e escrever e darei todo material necessário para isso.
–– Tô te lendo! Tu és esperto! E quanto vamos ficar devendo por essa bondade e favores?
–– Bondade sim, favor não. Todo cidadão tem direito à educação gratuita.
–– Mesmo assim ficaríamos em débito contigo.
–– Não, não, não. Eu sou quem estou em débito. Eu disponibilizo a equipe para ensiná-los a ler, escrever e votar e prometo que, dentro dos limites da cidade, construiremos uma vila só para vocês, além do mais, tu continuarás a tomares as decisões que quiseres.
–– Essa conversa tem rumo. Todo dia penso no futuro dessas crianças, mas, nem o Padre nunca propôs algo assim. É certo que ele ajuda com parte da comestiva e remédios.
–– Estamos no inicio do mês de junho e a eleição é em  novembro. O que tu me diz? Ah, quero perguntar-te. São quantos homens e mulheres aqui?
–– Noventa homens e sessenta mulheres e mais as crianças.
–– Então o que teríamos aqui seriam cento e cinquenta eleitores, digo cento e cinquenta cidadãos de bem. O que acha da minha proposta? Se quiseres mando redigir um documento registrado em cartório com a minha e a sua assinatura. Um contrato de gaveta.
–– Homem não carece disso não. Minha palavra vale mais que papel de cartório. Além do mais, se eu aceitar tua proposta, e tu não a cumprir, tu não terá lugar onde se esconder. Vou te buscar debaixo da saia de tua mãe e mato tu e ela.
–– E depende de que então?
–– Tenho que reunir meu povo para saber. E outra, tenho que ouvir o Padre Lauro. Ele será o avalista caso todos estejam de acordo.
–– É bom tomarmos decisões rápidas, porque o tempo urge.
–– Não me aperreie não. Tudo tem o tempo certo. Quer ver uma coisa?
–– Sim.
–– Te botaram no meu caminho e agora estamos falando do futuro, de leitura, de aprendizagem, meio de vida e coisa e tal.
–– É verdade. Há males que vem para o bem. Se eu não tivesse sido sequestrado, não estaria aqui e não teria te conhecido.

No dia seguinte, antes que os galos cantem e o sol nasça, os cangaceiros tomam café com cuscuz à beira de uma fogueira e partem para fazer a emboscada por ordem de Gerônimo. São seis homens armados que não temem a morte. Eles chegam e se entocam como fantasmas, camuflam-se ao redor da cabana estrategicamente e esperam. O tempo passa. Uma vez ou outra já perto do meio dia, o sol a pino, um deles pega a cabaça de água e passa de mão em mão. Um dos homens que está no ponto mais alto avista o rastro de poeira na estrada de chão lá longe e faz o sinal com um pano branco amarrado na ponta do cano da espingarda.

–– Ele chegou – diz o outro.
–– Quando ele se aproximar da porta da cabana a gente o cerca. Só atirem nas pernas. Isto é, se for necessário. O Capitão mandou levar o homem vivo.
–– Certo.
  E assim é feito.
 –– Não se bula, cabra! Bote as mãos pra riba!
–– O que?
–– Tu estás cercado. Não toques um dedo nas armas.

Vendo que não havia chance de combate ou de revidar à cilada o homem se entrega.

–– Eu me rendo. Não atirem.
–– Gavião, pega as armas dele. Bota as mãos pra trás. Avexado.
–– Tudo bem, mas quem são vocês? Não somos inimigos. O que vocês querem? É dinheiro?
 –– Cala a porra dessa boca. Só obedece que vai ficar tudo bem.
–– Está bom! Está bom!
–– Vamos leva-lo.
–– Vamos!
–– Tinha um homem na cabana. Onde ele está?
–– Tu vais já saber. Caminha. Ligeiro.
–– Cadê o homem?
–– Cala essa maldita boca infeliz! Se o capitão não quisesse te ouvir juro que cortava tua língua.
 –– Que capitão?
  –– Espera ai – diz o cangaceiro chefe desse pequeno bando enquanto quebra um graveto, põe na boca de Lucas e amarra as duas pontas com um pedaço de pano – pronto! Agora tu sabes o que significa alguém dizer “cala a boca”. Os outros caem na gargalhada.

E depois de muito andar, subindo e descendo barrancos, caminhar por trilhas cheias de garranchos, xique-xique e mandacarus que só eles sabem onde vai dar, chegam ao acampamento.
(...)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

CANGACEIROS 19




–– Vamos! O Coronel vai ficar aliviado em saber que esse verme não irá atrapalhar a eleição.
–– Claro que vai.
–– Vamos tomar umas cachaças no primeiro bar. Tô com a goela seca.
–– Não. Só depois que eu falar com o Coronel. Ele mesmo deve liberar a gente por hoje depois dessa.
–– É mesmo, chefe.

Mas nesse trecho da caatinga não há nada que os ouvidos não ouçam e os olhos de Gerônimo não vejam. E assim que o carro parte, seis cangaceiros do bando sai das tocas, dos arbustos e detrás das rochas e vão até a cabana verificar o que tem lá.

–– Arrebentem essa porta. Ôxe!
–– Quem és tu cabra?
–– Sou o presidente da Câmara de Olho d’Água! Salvem-me e eu pagarei vocês.
–– Vamos leva-lo para o acampamento. Lá o capitão decidirá.
–– Quem é o capitão?
–– Tu saberás quando chegar a hora.

Os cangaceiros apontam as armas e levam o presidente da câmara até o acampamento.
Gerônimo encontra-se nesse momento sentado à sombra da casa de taipa, segurando seu filho ao lado da companheira, fazendo um dengo em momento raro. Os homens estão no topo da montanha mantendo vigilância enquanto outros se aproximam do chefe para avisá-lo de que a tropa está trazendo alguém.
–– Gerônimo, os homens estão chegando com um prisioneiro.
–– Hum! Deixa vir.
A mulher franzina de Cancão, um dos homens da maior  confiança de Gerônimo, entrega-lhe uma cuia de farinha e por cima uns dez pequis cozidos. Com a outra mão entrega também um caneco com um punhado de sal.
–– Eita Cancão! Não tem coisa melhor do que roer uns caroços de pequi depois do almoço. Isso é que dá sustança a homem. E além do mais, serve pra curar muitos males do corpo. Obrigado, viu, Maria?
–– De nada chefe.
–– Maria, aproveita e traz uns pedaços de rapadura, pro Gerônimo tirar o gosto de sal da boca – ordena Cancão.
–– Ah, isso não. Deixe que eu mesma trago a rapadura e a cabaça de água – finaliza a companheira de Gerônimo.
O bebê começa a chorar e a mãe o pega nos braços, conforta-o e o leva para dentro de casa. Os homens já são avistados bem perto e Gerônimo levanta-se para recebê-los.
–– Olha aí chefe. Encontramos esse homem numa cabana, amarrado, com fome e sede.
–– Quem és tu, cabra? – indaga Gerônimo.
–– Eu sou o presidente da Câmara de Olho D’Água.
–– Sei. E como tu foste parar nessas brenhas?
–– Eu fui sequestrado pelos homens do Coronel Messias dos Reis.
–– Cancão vem cá. Esse tal de Coronel Messias não é o pai daquele infeliz que eu cortei a orelha dele?
–– Deve ser.
–– Então, porque tu foste levado para a cabana?
–– É o seguinte: eu acho que a princípio era para me matarem. Depois o sujeito chamado Lucas, o braço direito do Coronel revelou que era para atrapalhar a eleição, pelo fato de eu ser o mais votado depois do prefeito.
–– E porque ele não te matou?
–– Ele é o carrasco perverso do Coronel, mas também é ganancioso. Fez uma proposta para mim.
–– Que proposta?
–– O trato era um golpe que ele iria aplicar no Coronel.
–– Como é que é? Desembucha, vai.
–– Para me manter vivo, eu teria que dar a ele todos os meus bens de papel passado e tudo e ele iria trazer comida e água todos os dias, me manteria em cativeiro, depois da eleição eu teria que ir embora para sempre da cidade, mas o Coronel não poderia saber de nada, concordei e então, ele mandou os jagunços para esperar lá distante, no carro, deu dois tiros no chão para parecer que eu havia morrido e foi embora.
–– E quando ele voltará para te ver na cabana?
–– Amanhã de manhã, muito provavelmente.
–– Tem mais coisa. Foi ele quem matou a filha de Maroca e o filho de um tal de Manoel Espicha Couro. Ele é um assassino sanguinário. O Senhor soube dessa história?
–– Soube. Mas quero ter certeza de que tu estás falando a verdade, por que se for assim mesmo, do jeito que tu conta, agora essa briga é nossa.
–– Ele é quem elimina as pessoas a mando do Coronel. Quando o Senhor for à cidade faça uma visita ao Padre Lauro. Ele sabe mais das coisas do que eu.
–– Tu és amigo do Padre Lauro?
–– Claro! Ele é um dos nossos maiores aliados. Apoia e orienta o prefeito em tudo, além de ser o conselheiro dele. Se o Padre Lauro contar a metade do que ele sabe, o Senhor irá ficar abismado.
–– O Padre Lauro virá aqui em três dias para batizar meu filho. E aí tu confirmarás tudo que disseste.
–– Confirmo sim, Senhor.
–– Cancão, amanhã tu irás montar uma tocaia para trazer aqui esse vagabundo do Lucas. Quando ele chegar à cabana, pegue o homem e traga-o para mim.
–– Sim Senhor.
–– Calango!
–– Sim Capitão!
–– Chame dois homens e vão à casa do Manoel Espicha Couro agora. Diga-lhe para ele vir para cá urgente. Mas não diga do que se trata, apenas que é importante. Pegue os cavalos no curral e vá homem, avexado.
–– Sim Senhor.
–– Presidente tu já foi eleito quantas vezes?
–– Estou no terceiro mandato. E na próxima eleição serei candidato a prefeito.
–– É. Tu pareces que é benquisto pelo povo. O problema é que agora nosso acampamento está comprometido.
–– Por quê?

CANGACEIROS 18




–– Conheço bem teu temperamento, sempre querendo ter razão. Chegou na bodega com arruaças, não foi?
–– Não pai. A gente estava pedindo votos. Lá estava cheio de cachaceiros e jogadores. Todos viram a humilhação porque passamos. E ainda teve um desgraçado que falou que eu tive foi sorte de ele não cortar minha garganta, apartar a cabeça do pescoço para mandar para o Senhor?
–– Filho toda ação tem reação. Eu sempre disse que antes de eleição a gente tem que engolir sapos.
–– Ah, mas não é assim que o Senhor vem agindo. Aqui na fazenda o Senhor bate e manda bater em escravos e até em funcionários e já até matou...
–– Baixa o tom de voz, seu moleque. Tá pensando que tá falando com seus parceiros? Tu me respeitas.
–– Desculpas, pai! Me exaltei.
–– Onde mora esse bandido?
–– E quem é que sabe? Lá mesmo disseram que ele estava só de passagem para comer.
–– É uma afronta à nossa família. Não resta dúvidas, mas não vou colocar meus homens e nem vocês nessa celeuma.
–– Se o Senhor deixar, eu mesmo com meia dúzia de homens entro nas brenhas atrás dele.
–– Inácio, um homem de verdade resolve as coisas é na hora, nem que morra, mas é na hora. Tu andavas com três jagunços que sabem atirar, brigar e cai numa armadilha dessas. É inaceitável. O que é que esse povo vai falar? Que cortaram a orelha do filho de Messias para dar uma lição ou mesmo para mandar uma mensagem? É isso?
–– Pai espera! Deixa que eu resolvo isso!
–– Onde estão os homens e as armas deles?
–– Os homens estão lá fora.
–– E as armas?
–– Eles levaram. Espingardas, revólveres e facas.
–– O que faltou? Deixar vocês nus? Bem, vamos oferecer uma recompensa para quem trouxer esse homem vivo, pode ser apanhado, ferido, mas vivo. Eu mesmo quero arrancar os olhos dele para ele saber com quem se meteu.

–– E de quanto é essa recompensa?
–– Chama o Zeca do chicote, pega seus homens e vai na cidade espalhar que estou prometendo vinte cabeças de gado para quem trouxer esse infeliz para mim. Se tudo der certo, a gente pega ele antes da eleição. Depois que dermos uma taca nele e jogar numa cova funda, o povo só irá lembrar disso mesmo. Vão até esquecer a tua orelha. Pega mais armas no depósito. Agora vai, avexado.
–– Estou indo!

Lucas e dois jagunços chegam à casa do vereador. A residência do político fica lá na ponta da rua, afastada e isolada das outras. O carro para e eles ficam dentro por um bom tempo fazendo campana a poucos metros da entrada. Logo depois da sessão da Câmara, por volta de onze horas dessa manhã o homem chega e é rendido no momento em que desce de seu veículo.

–– Vereador,  quero que você me acompanhe! – pego de surpresa e sem reação o político vê que Lucas tem um punhal na cintura de um lado e o revólver cano longo do outro.
–– O que?
–– Não faça nenhum movimento brusco ou leva bala. Tem dois homens naquele carro com armas apontadas para sua cabeça. É melhor vir comigo. E não faça nenhuma muganga.
–– Tudo bem! Tudo bem! O que querem comigo? Na minha pasta tem dinheiro.
–– Nesse momento não se trata de dinheiro. Entre no carro. Amarrem-no e ponham a venda nos olhos.
–– Para onde vão me levar?
–– Se não calar a boca corto tua língua aqui mesmo.
–– Certo! Certo!
–– Vamos embora.

Depois de andar por mais de duas horas em estradas de areia e piçarra, subindo e descendo, param no meio do nada, na caatinga, caminham até uma cabana de madeira de um cômodo só, construída previamente para manter o homem nesse cativeiro. O grande pé de pequi faz sombra no local e é a única fonte de ventilação.

–– Vamos! Levem-no para a cabana.
No centro do salão, há um mastro de carnaúba que segura o teto.
–– Amarrem-no na carnaúba e esperem lá fora, preciso ter uma conversa com ele. Fiquem de vigia perto do carro – ordena Lucas.
–– Sim, Senhor – responde o jagunço.
–– Vereador, a conversa é o seguinte: recebi ordens para te matar. Te tirar do caminho nessa eleição, afinal, você é o mais bem votado depois do prefeito. Não interessa!
–– Sei que tu trabalhas para o Coronel. Todos te conhecem na cidade. Tu és o carrasco dele.
–– Bem, já que tu me conheces, sabe do que sou capaz. Tu és um homem letrado e sabes que posso aliviar para o teu lado.
–– Estou ouvindo. O que tu queres?
–– Bem, eu posso dizer que te matei, mas tu ficarás aqui até depois da eleição. Mas tem um preço.
–– Quanto? Quanto devo pagar?
–– Eu quero os teus bens móveis e imóveis. Todo o dinheiro que tiveres. E depois te liberto e tu vais embora de Olho d’Água.
–– E como vou viver aqui até esse dia de liberdade?
–– Eu virei sozinho trazer-te água e comida, Concordas?
–– Como não? Não tenho opções!
–– Certo! Vou dar dois tiros e irei embora. Os jagunços irão pensar que dei cabo de ti. Amanhã voltarei aqui para dizer-te como faremos acontecer as coisas. É bom não tentar fugir, porque aí tu vais pôr minha reputação em jogo e terei que te matar mesmo.
–– Como iria eu fugir?
–– É. Aqui é bem distante de tudo, e por fora tem cadeado na porta – e em segundos, Lucas dispara dois tiros no chão com  intervalos curtos entre um e outro e vai para o carro.
–– Pronto! Está feito! – diz ele aos comparsas – vamos embora.
(...)

CANGACEIROS 17




–– Chefe o que vamos fazer?
–– Não quero um pio até chegar à fazenda. Lá, depois que eu falar com meu pai, falo com vocês. Esse desgraçado vai pagar caro por isso.

Inácio lavou a orelha ou o que restou dela rente ao pé do cangote com cachaça para não infectar e amarrou um lenço. Está imprialzinho o Van Gogh nordestino, marejando sangue.

Pouco a pouco os clientes chegam à bodega para comprar secos e molhados, goma para fazer tapioca e beiju, e claro, curiar sobre o que aconteceu na noite passada. Tem gente que vai ao local só pela fofoca, o que não é o caso de Chico Preto que desmonta de seu jumentinho e se aboleta no tamborete lá no canto enquanto observa quem entra e sai, e quando vê que vagou mais o movimento destabaca a falar.

–– Arilson eu estava aqui matutando e quero te dizer uma coisa.
–– Ai é? Tu estavas matutando é?
–– Pense num negócio bom da peste?
–– E o que é Chico? Fala!
–– Rapaz eu conto, mas tu vai ter que me dar alguma coisa em troca.
–– Ah, Chico, esse é o problema de vocês. A gente faz, faz e até para dar uma sugestão vocês querem pagamento.
–– É só uma ajuda, Arilson. Tu é rico.
–– Rico da graça de Deus. Tu só queres tudo na moleza.
–– Também não é assim. Só quem faz teus recados aqui sou eu. E não tem nem salário não. Oxe!
–– Pois desembucha! Eu sei que é dinheiro que tu queres.
–– É. Mas não vai te fazer falta essa merreca. Além do mais tu vais é economizar para a festa.
–– Fala abirobado! Se for mesmo desse jeito eu pago.
–– Arilson tu-tu sa-sabes, que-que o Chi-Chi, Chico Pre-Preto é um pen-pen, pensa, pensador.
–– Fica na tua aí, Gaguinho! Deixa o homem falar.
–– Tá-tá, bom.
–– Arilson é o seguinte: tu estás vendo aqueles dois bois ali no pé da cerca que tu alimenta há dias?
–– Sim, estou vendo! O que tem eles?
–– Ninguém vai vir busca-los.
–– Como é que tu sabes disso?
–– Põe as ideias no lugar homem de Deus! Quem vier buscar será considerado culpado e denunciará quem mandou matar a filha de Maroca e o filho do Manoel Espicha Couro. Estás me entendendo? Ademais quem é que sabe se não é uma armadilha do delegado? Então, pode ter certeza, os bois são seus e servirá muito bem para o churrasco da festa.
–– Hum! Mas se for de outra pessoa?
–– É nada! Ninguém virá reclamar. Faz o churrasco com eles e pronto.
–– Chico eu não quero envolvimento com bandido, com jagunços, cangaceiros ou com a polícia.
–– Depois não diga que não avisei.
–– Vamos fazer assim, amanhã bem cedo, tu e o Gaguinho virão para cá, a gente mata os bois e dá a carne para quem tem fome, para as famílias mais carentes.
–– Po, pois tá, taí que, que eu gos, gostei.
–– Distribuir de graça?
–– É. Só quero o couro, os chifres e a buchada pra fazer panelada. Vocês podem avisar o povo pobre, mas só os mais necessitados. Senão vai chover de gente querendo.
–– Tá muito é bom assim. Mas nossos pedaços a gente tira primeiro e tu guarda viu Arilson?
–– Ah, e a carroça eu quero para fazer é lenha pro fogão. Os bois da festa eu darei um jeito de arranjar. Pois vão logo avisar o povo, aí dá mais de 500 quilos de carne.
–– É. Os bichos são gordos. Pois vamos Gaguinho.
–– Va, vamos!

Lá fora vai passando o Senhor José, montado num burro preto, mais conhecido como Zé do burro, o animal é bom, bem tratado e estradeiro.

–– Seu Zé, quer vender o burro? – indaga Chico Preto.
–– Vendo! – responde o homem já freando o animal pelas rédeas, bem em frente a bodega.
–– Quanto é Seu Zé?
–– Rapaz  é 150!
–– Dou cem no pau!
–– Não, meu filho, só vendo todo!
––Vai te lascar, véi. Eu quis dizer foi à vista.
–– Pois vão para a baixa da égua, seus filhos duma ronca e fuça!
–– Deixem de gaiatice e vão procurar o que fazer. Vão!
–– Já vamos Arilson! Armaria, nãm! Ninguém pode nem brincar.

Na estrada de chão que dá acesso à fazenda, avista-se de longe o carro que se aproxima. Inácio, com a mão na orelha desce apressado e entra em casa enquanto os jagunços saem e esperam fora da casa grande.

–– Cadê meu pai – indaga à criada.
–– Está na sala dele.
–– Meu pai, tenho um problema sério!
–– O que aconteceu?
–– Ontem quando fazíamos campanha pelo interior, parei na bodega do Arilson e me meti numa confusão.
–– O que houve com sua orelha?
–– É isso que estou explicando. Tivemos uma briga lá nessa maldita bodega e um cangaceiro por nome Gerônimo, ele e outros três ou quatro homens humilharam a gente. Quando fui tomar as dores, ele voo em mim e cortou minha orelha. Depois, apontando armas para nós, amarrou-nos, tomou a chave do carro e jogou no mato. E para completar disse que aqui não tem homem de honra.
(...)

quinta-feira, 27 de junho de 2019

CANGACEIROS 16




–– Então compro todas e pago no dinheiro. Dinheiro em meu bolso é como fome cearense, nem se acaba e nem fica pouco. Bebida e comida para todos. Por conta de nosso candidato, o futuro prefeito de Olho D’água: Elesbão.

Mesmo ouvindo o nome do candidato, com bebida e comida de graça, os jogadores do recinto não se manifestam e ficam em silêncio por um instante. Arilson, sensato, fala ao filho do fazendeiro.

–– O Senhor não gostaria de passar amanhã, de dia para conversar com o povo de Jatobá? Esses aí são só jogadores da região.
–– E essas porras não tem voto não?
–– Tem, Senhor, mas o Senhor já bebeu muito. É melhor vir amanhã.
–– Gerônimo termina de comer a panelada e pede mais uma dose para beber e ir embora.
–– Senhor, traga-me uma dose dessa cachaça. Quero partir.

O outro cangaceiro, com a espingarda apoiada no bico da bota também pede mais uma dose e os dois que estavam fora entram para comer no balcão da bodega.

–– O que diabo é isso? Todo mundo agora anda armado nessa espelunca?
–– Senhor, esses homens estão de passagem e vieram para comer. Nunca antes passaram por aqui. Nem eleitores eles são – diz Arilson querendo apaziguar a situação.
–– Pois bote a cachaça em cima do balcão. Quero ver todo mundo beber e comemorar a vitória de Elesbão, o nosso candidato.
–– Olhe, eu boto, mas só bebe quem quiser.
–– Quanto devo? – pergunta Gerônimo.
–– Não deve nada filho da puta. Não tá vendo que quem paga as coisas aqui sou eu, filho do Coronel Messias?
–– Rapaz, você é muito jovem para morrer.
–– E quem vai me matar filho duma égua?
–– Quanto devo ao Senhor? – Gerônimo faz ouvido de mercador.
–– Não precisa pagar, não, Senhor. Só quero paz no meu recinto.
–– Agora esse filho duma égua vai pagar é a despesa toda. Tá pensando o quê? Chega, come, bebe e sai sem pagar?
–– Eu não respeito quem não me respeita, não conheço teu pai. E num lance rápido e certeiro Gerônimo segura o pescoço do homem com a mão esquerda, saca o punhal afiado com a direita e corta a orelha do filho do coronel, ali mesmo, em pé. Os homens do rapaz apontam as armas, mas percebem que canos gelados de espingardas estão em suas nucas.
–– A tua orelha ficará em meu cordão de desafetos – diz Gerônimo com o punhal no pescoço do jovem – e se quiser ficar vivo diga a seus homens para largar as armas e se deitarem no chão.
–– Desgraçado! Façam o que ele diz.
Os homens entreolham-se, largam as armas e deitam-se. Os jogadores afastam-se sem nenhuma intromissão.
–– Joguem as facas também. Tem corda aí?
–– Tem Senhor.
–– Traga aqui. Quero todos amarrados. E vamos levar as armas também. Jeremias tira a chave do carro e joga no cercado – ordena Gerônimo a um dos seus - Isso é para tu respeitar cara de homem, cabra sem vergonha. Está vendo isso aqui? – mostra nos peitos as orelhas secas enfiadas num cordão de couro – são meus desafetos. Todos mortos.
–– E ele tá é com sorte que o Capitão não cortou a garganta dele.
–– Não conheço teu pai, mas ele não ficará contente em ver o filho valentão sem orelha. Vamos embora! – Gerônimo é homem de honra e antes de sair, puxa do bolso o dinheiro em cédula, põe sobre o balcão e paga sua despesa, nem pede troco.

Os cangaceiros montam os cavalos e desaparecem na escuridão.

Inácio dos Reis, filho do Coronel Messias, humilhado que foi, continua arrogante, dando ordens, mesmo que ainda esteja envergonhado.

–– Vamos! Vocês aí, me desamarrem.
–– Soltem a gente – diz o outro jagunço contorcendo-se no chão.

Arilson faz ouvido de mercador e ajeita as cadeiras ao redor das mesas, talvez com medo de que eles voltem para terminar o serviço.

–– Soltem-nos – ordena o comerciante.

E depois que todos são desamarrados, lançam mãos dos candeeiros para procurar as chaves do carro. Como não é tão fácil encontrar, desistem e esperam que o dia amanheça para procurar com mais cuidado e enquanto o sol não aparece, tomam mais cachaça e dormem ali no alpendre. Arilson com pena, pede licença, entrega três redes para Inácio armar, manda os clientes para casa e se tranca por dentro.

No dia seguinte, com os primeiros raios do sol e os galos cantando, os homens ainda ressacados levantam-se e batem na porta de Arilson.

–– Senhor Arilson, acorda. Arranje aí água para a gente beber.
–– Água e um café bem forte para curar  a ressaca.
–– Vamos caçar a porra dessa chave logo, enquanto ele abre a bodega.
–– Abra a bodega, moço. Temos dinheiro para pagar.
–– Já estou indo. Tenha calma aí. Oramarrapá!
–– Rapaz  tu que jogou a chave deve saber mais ou menos onde caiu.
–– Espera aí, que já vou ver.

Os jagunços pisam no mato seco, nos capins, arrastam os pés para um lado e outro. Ciscam como galinhas no terreiro e depois de mais de uma hora, encontram.

–– Achei! Achei!
–– Pois traz aqui, avexado!
–– O café está pronto. Fiz umas tapiocas também.
–– Tem manteiga da terra aí?
–– Tem.
–– Pois bota aqui para nós comer.
–– Frita ovos também.
–– É para já.

Após tomar o café da manhã, Inácio paga a despesa e os homens entram no carro que deixa o rastro de poeira de tanta pressa que eles tem de sair dali.

CANGACEIROS 15




–– Gerônimo! Seja bem vindo à casa de Deus, meu filho!
–– Padre, meu filho nasceu! Quero que o batize!
–– É um menino?
–– Com a graça de Deus, Padre, se chamará Gerônimo!
–– E quando você pretende trazê-lo aqui para o batismo?
–– Não quero batiza-lo aqui, Padre!
–– Porque não, filho? Aqui é a casa de Deus!
–– Padre, foi o Senhor mesmo quem disse que onde houver mais de um, lá estará Deus, então, meu filho nasceu na caatinga e quero batiza-lo lá. É lá que estão os meus. Dará muito na vista estarmos todos aqui num mesmo dia, pois ninguém virá desarmado. Não somos bem vindos aqui.

A conversa é mantida no pé do altar sem muitas cerimônias nem ninguém para se intrometer.

–– Porque você não me mandou um mensageiro?
–– Padre não preciso de mensageiros para resolver minhas questões.
–– Eu sei, eu sei. E quando você quer o batismo?
–– Daqui a uma semana. E depois dessa eleição quero casar-me.
–– Que maravilha! Deus ficará contente de sua união com minha irmã.
–– Não só ele, nós também.
–– Então marque o dia certo que irei. Tenho umas coisas para falar para vocês sobre seu passado.
–– E tem?
–– Tenho. Quero falar sobre o que aconteceu com seus antepassados há uns cinquenta anos.
–– Pois pronto! Em sete dias o Senhor irá ao nosso acampamento, sozinho, daremos proteção no caminho, mesmo que não nos veja, estaremos esperando pelo Senhor.
–– Levarei dois São Cristãos comigo. São meus auxiliares.
–– Leve-os e serão bem vindos! Era só isso Padre Lauro. Estamos acertados?
–– Estamos. Estaremos lá.
–– Adeus Padre!
–– Adeus!

Os homens não perdem tempo e saem como chegaram, sem muito chamar a atenção a não ser pelo armamento e as vestes. Seguem pelo mesmo caminho de volta, mas Gerônimo, astuto, decide que não irão por onde vieram para evitar algum conflito, e então vão por uma estradinha de chão que vai dar na bodega do Arilson.
–– Capitão tem uma parada ali na frente. Parece um bar.
–– A caminhada é longa. Vamos parar lá para comer e beber alguma coisa. Depois partiremos. Chegaremos de madrugada em casa.
–– Certo Capitão!

Os lampiões já estão acesos na frente da bodega de Arilson. Há cavalos amarrados na cerca, burros também e alguns jumentos selados, quietinhos esperando por seus donos enquanto jogam e bebem.

–– Quero entrar sozinho lá. Ninguém nos conhece. Fiquem atrás e só um entra depois, dois ficam fora. Como se não nos conhecêssemos, ocupem mesas diferentes ou fiquem em pontos que possam ver tudo como os calangos. Entenderam?
–– Sim, meu capitão!
E assim é feito.
–– Quero comer alguma coisa e tomar uma talargada de cachaça.
–– Tenho só panelada, mas preciso requentar – diz Arilson.
–– Serve. Eu espero.
–– Aquela mesa ali está desocupada Senhor. Pode se sentar lá.
Os jogadores de baralho nem notam que um cangaceiro apoderou-se de uma mesa no canto onde dá para ver quem entra e quem sai; os jogadores de sinuca entreolham-se e continuam jogando, enquanto um segundo homem adentra o recinto.
–– Estou com uma fome danada, o que tem para comer?
–– Só tenho panelada!
–– Serve!
–– Sente-se aqui desse lado. Nessa mesa – diz Arilson, acostumado com todo tipo de gente. Vou esquentar seu prato.
–– Gosto com pimenta. Tem pimenta aí?
–– Tem sim, Senhor. Malagueta!
–– Então bota umas dez! E faz mais dois pratos.
–– Sim, Senhor. Três pratos. Não é?
–– Isso! Faz três pratos!

A luz dos candeeiros, pendurados nos caibros da biqueira da casa não clareiam muito, e nem dá para ver com nitidez quem está a dez metros. Nesse momento para um carro na frente da bodega e descem quatro homens, um deles é o filho mais velho do Coronel Messias, jovem de aproximadamente 28 anos, metido a valente e conhecido por sua arrogância por onde passa em toda a região. Só anda armado e deixa a arma à vista na cintura. Os outros três homens ficam no peitoril da bodega esperando a reação do patrão.

–– Olá! Estamos com vontade de comer uma coisinha de sal. O que tem para comer?
–– Tem mais nada não. Se o senhor esperar, posso fazer uma buchada. Já tá temperada – conforta Arilson por um segundo, enquanto leva o prato do capitão para a mesa.
–– E esse prato aí, de que é?
––É panelada, mas é desse moço aqui que esperou requentar.
–– Bota aí umas pingas para nós. Quatro doses.
––Tá bom, Senhor.
–– Avexado cabra!
–– Já tô botando, visse?

O filho do coronel bebe e pede outra. –– Bebam meus amigos, é por minha conta. Por conta do Elesbão, nosso candidato! Vou pagar uma rodada para todos agora. Bote aí bebida para todos. Aliás, tem quantas garrafas de cachaça aí?

–– Tem bastante, Senhor! – diz Arilson.
(...)