O que temos
de melhor na terra é o ar que respiramos, principalmente depois que chove. Fica
muito mais limpo. Naturalmente que isso não acontece esses dias. O homem faz
promessas para o Padre Cícero; faz romaria para São Francisco e se apega com
todos os santos, mas parece que sua boa fé está fraquejando. Suas preces não
são atendidas, e cada dia que passa o gado morre de sede. Sabe-se que a
esperança é a última que morre, mas, a fraqueza toma conta de muitas famílias e
com isso vem o desespero.
O céu hoje
parecia uma pintura feita por um artista renascentista. Era uma promessa de
chuva ao entardecer. O sol brincava de se esconder por trás das nuvens
carregadas. Logo o vento veio e dissipou o sonho do homem do campo. Eram nuvens
passageiras, efeito colateral de um clima louco. A noite logo chegou e pendurou
como ornamento uma lua prateada. O manto de estrelas embeleza o firmamento,
aqui e ali, via-se uma estrela cadente.
Lá nas
brenhas, nesta sexta-feira, uma noite bela, tudo pode acontecer, até porque
mais tarde seria uma lua de sangue, lua cheia, e quanto a isso, existem muitas
histórias, principalmente do homem que se transforma em um grande lobo. Melhor
dizendo, é a metamorfose do homem em lobisomem. Pode até ser que muitos
considerem isso uma lenda, mas, na verdade não é nem de perto o que acontece
nesse pacato povoado nessa época do ano. Aqui o povo relata com criatividade e convicção que o bicho come bode, ovelhas, mata gente e se encontrar dando
sopa, até crianças ele devora. Tido e conhecido como animal feroz, essa
criatura aterroriza o lugar.
É o horror
criado no meio do mato, e, nessa noite ninguém sai de casa. Fecham as janelas e
colocam travas nas portas. Alguns por precaução varam a noite em claro, na vigília,
com a espingarda bate-bucha entre as pernas e de frente pra porta. É uma longa
noite. Os bichos também ficam alvoroçados. Os cachorros ao longe, latem como se
tivessem acuando uma caça grande e grunhem como se apanhassem de cipó.
Nas casas,
pouca conversa e muito silêncio, uma expectativa sem fim.
O relógio
até parece que parou no tempo. Os cochichos de pé de orelha e o piado da coruja
se confundem.
Certamente
que a região do Nordeste brasileiro não tem lobos, mas, o vento que corta as
montanhas envia sons uivantes, pelo menos é o que o cérebro do povo registra.
Pode até ser ilusão por conta do medo e do nervosismo.
Há momentos
em que o silêncio toma conta do ambiente e é exatamente essa calmaria que gela
a espinha quando ouvem o som de um graveto seco sendo quebrado, como se
houvesse ali um animal a espreita, pronto para atacar. Poderia até ser um dos
cães procurando abrigo, mas não se vê muita coisa lá fora. Ninguém é louco pra
ficar olhando pelas frestas das janelas. Quanto mais distante delas, melhor.
Na casa
estão João lobo, Júlio, Gina, Rita e um caçador amigo que veio pedir abrigo
nesta noite. É normal que ninguém se exponha nesse caso. Na mesa uma
garrafa de cachaça pra aplacar o frio de madrugada e um bule de café, também
tem umas tapiocas de goma e bolo frito feito no azeite dendê. O fogão a lenha,
construído com barro vermelho mantém a chama acesa e continua a faiscar, pra
manter quente o ambiente ou para fazer outro café ou um chá de erva cidreira
mais tarde.
De repente
um barulho de cascos no barro seco, tropel de cavalos ou bois que não se sabe
ao certo, rompe o silêncio, deixa todos com o coração na mão. Rita se abraça
com Gina e treme mais que vara verde. A cavalgada por assim dizer, aos poucos
vai se distanciando até sumir completamente e novamente reina o mais absoluto
silêncio.
O caçador
avisa que vai tomar uma lapada de pinga. Nem ao menos respondem.
João Lobo
havia montado uma grande fogueira com madeira seca e verde para durar mais
tempo acesa, porém, deixou para acender o fogo na última hora que fecharam tudo.
Nesse momento faz-se necessário que alguém vá lá fora e faça isso. A noite vira
um breu depois da meia noite e ainda é muito cedo. O problema é que todos temem
o pior, e em se tratando dessa criatura, existe a certeza de que ela é dotada
de inteligência e poderia estar em qualquer lugar e, sabe se lá se ela já não
estaria por ali nos arredores, na espreita, só aguardando o momento certo de
atacar.
Júlio
corajosamente diz que vai lá, mas seu pai diz que não, que prefere ir. O
caçador agradecido pela acolhida fala que ele é quem vai, uma vez que se sente
protegido e terá os dois na retaguarda. Então, decidem que tome cuidado, que
fique atento. Abrem a porta com muita cautela, mostram-lhe uma lamparina feita
de lata e um caneco de querosene para molhar os gravetos e tocar fogo.
Sebastião
caçador se prepara, coloca a espingarda atravessada nas costas, ajeita seu
facão na cintura, dá uma pegada no chapéu de couro, tira uma peia de fumo, põe
na boca, masca um pouquinho, cospe, pega a lamparina acesa, com a outra mão leva
o caneco de querosene, abrem a porta bem devagar e ele sai nas pontas dos pés.
Fecham a porta bem ligeiro como quem diz – pronto, está entregue as cobras, ou
melhor, ao bicho, mas ficam atentos.
Existe uma
linha de pensamento que diz que quando é pra dar errado, basta começar errado. Pois não é que uma corrente de vento soprou forte naquela direção e apagou a
lamparina um pouquinho antes de molhar os gravetos com o combustível. Aí o
cabra se aperreou e gritou feito menino novo com medo de apanhar; pedindo pra
trazerem um fósforo, ligeiro. João lobo
viu que não tinha alternativa e disse que quem está no inferno é melhor se
abraçar logo com o diabo e foi lá com a caixa de fósforos e uma vela. Sabia
tanto que o querosene já havia secado que resolveu levar um punhado de pólvora
pra acender o fogo com mais facilidade. Assim foi feito tranquilamente. Voltam
para a casa mais rápido que o vento nas colinas. A fogueira agora vai clarear
até de manhã.
Tudo volta aparentemente ao normal, após deixar todos com os nervos à flor da pele. A adrenalina continua,
pois nem meia noite chegou ainda. Melhor agora seria fazer um lanche enquanto
um mantinha a vigilância.
De repente
uma pancada grande na porta e o grunhido de dor do cachorro faz com que todos
fiquem em alerta e de armas em punhos. O cão não morreu e fica arquejando no pé
da porta.
João Lobo
sabe por experiência própria que foi um ataque de um bicho grande pra conseguir
sacudir o cachorro daquele tamanho com tanta força contra a porta. Não podia
fazer nada e não ia arriscar salvá-lo deixando os seus desprotegidos. Era
melhor ficar trancado ali por mais tempo. Saiu verificando as portas e janelas.
Checou tudo e voltou ao seu posto.
Novamente o
silêncio é quebrado com o berro dos bodes e carneiros. Pensam eles que o
monstro está atacando os outros animais e irá causar muitos estragos e
prejuízos na propriedade.
A porta da
cozinha é forçada, com batidas fortes. Já chega a ser uma tortura psicológica.
Por algum tempo prevalece um barulho rosnado que mais parece um cão enfurecido
sem latir. Ele ronda a casa de todos os lados e dá sopapos em cada janela e
porta como quem procura um ponto fraco para entrar. Não há fragilidade, tudo
foi reforçado.
Apesar de
todas as travas, o bicho é astuto e de forma animal consegue a façanha de pular
para o telhado, caminha sobre ele, quebrando telhas e ripas com seu peso. E
como uma galinha cisca a terra em busca de pequenos grãos, ele também espalha
telhas para todo lado. E de repente some. Deixa um vazio novamente como quem
desiste e dá um alívio.
As nuvens
passam em câmera lenta diante da lua gigante. Lua vermelha que só ela mesma é
testemunha ao longo da história de tantas tragédias nesse contexto. E essa
noite macabra parece não acabar mais.
Na casa, as
frestas de luz mostram os estragos deixados pelo animal. Rita se apega a um
crucifixo e começa a rezar um Pai Nosso que estais nos céus com muitas Aves
Marias.
O homem é um
ser temente a Deus. É temente também às criaturas malignas imaginárias da terra, e essa é
sem sombra de dúvidas bem real para não se ter medo. Não se sabe ao certo o que
ela quer, mas coisa boa não é. Ás vezes,
nesses casos especificamente, o silêncio é uma armadilha que pode estar no
contra-ataque.
O monstro
agora atormenta o rebanho de ovelhas, procura um cabrito que possa carregar nas
presas, e consegue. Grunhindo feio, corre e salta em cima da casa, somou peso
para poder cair dentro, antes como que para deixar a situação mais apavorante,
derruba o cabrito sem vida no meio da sala e provoca uma distração na família
para logo em seguida arrebentar as ripas e pular pra dentro. O reboliço é
total. O primeiro a ser atingido é Sebastião, o caçador, com um golpe mortal na
garganta e já cai morto. Gina vendo o pai e o irmão correndo perigo de vida
manda Rita se esconder em baixo da cama. Põe suas facas na cintura e empunha
seu arco esperando uma oportunidade para atirar. Júlio também é atingido nas
costelas ficando imóvel no chão. Não há como lutar com um animal daquele porte
além de estar na penumbra, João lobo abre a porta rapidamente, pois sabe que lá
fora, perto da fogueira há mais luz e fica mais fácil de atirar e não errar o
alvo. Mas o lobisomem pareceu entender a jogada e não quis acompanha-lo,
preferiu encarar Gina que agora estava a menos de três metros de frente pra ele
e dessa distância não conseguia errar. Gina estava bem concentrada e sabia que
se algo desse errado não haveria tempo para lançar outra flecha, então presumiu
o ataque e soltou a flecha que o atingiu no peito esquerdo, bem no coração. O
animal dessa vez soltou um grito doloroso e tentou escapar, sendo alvejado nas
costas com mais de trinta caroços de chumbo grosso. Caiu ali mesmo, ao lado da
fogueira. João Lobo pergunta à filha:
- Será que
morreu?
- Claro!
Para essa luta envenenei as flechas! Pois sabia que poderia não haver uma
segunda chance.
E assim se cumpre
a frase do animal, de não entrar na briga errada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário