sábado, 31 de dezembro de 2016

GINA V, A Caçadora - Lobisomem

O que temos de melhor na terra é o ar que respiramos, principalmente depois que chove. Fica muito mais limpo. Naturalmente que isso não acontece esses dias. O homem faz promessas para o Padre Cícero; faz romaria para São Francisco e se apega com todos os santos, mas parece que sua boa fé está fraquejando. Suas preces não são atendidas, e cada dia que passa o gado morre de sede. Sabe-se que a esperança é a última que morre, mas, a fraqueza toma conta de muitas famílias e com isso vem o desespero.

O céu hoje parecia uma pintura feita por um artista renascentista. Era uma promessa de chuva ao entardecer. O sol brincava de se esconder por trás das nuvens carregadas. Logo o vento veio e dissipou o sonho do homem do campo. Eram nuvens passageiras, efeito colateral de um clima louco. A noite logo chegou e pendurou como ornamento uma lua prateada. O manto de estrelas embeleza o firmamento, aqui e ali, via-se uma estrela cadente.

Lá nas brenhas, nesta sexta-feira, uma noite bela, tudo pode acontecer, até porque mais tarde seria uma lua de sangue, lua cheia, e quanto a isso, existem muitas histórias, principalmente do homem que se transforma em um grande lobo. Melhor dizendo, é a metamorfose do homem em lobisomem. Pode até ser que muitos considerem isso uma lenda, mas, na verdade não é nem de perto o que acontece nesse pacato povoado nessa época do ano. Aqui o povo relata com criatividade e convicção que o bicho come bode, ovelhas, mata gente e se encontrar dando sopa, até crianças ele devora. Tido e conhecido como animal feroz, essa criatura aterroriza o lugar.


É o horror criado no meio do mato, e, nessa noite ninguém sai de casa. Fecham as janelas e colocam travas nas portas. Alguns por precaução varam a noite em claro, na vigília, com a espingarda bate-bucha entre as pernas e de frente pra porta. É uma longa noite. Os bichos também ficam alvoroçados. Os cachorros ao longe, latem como se tivessem acuando uma caça grande e grunhem como se apanhassem de cipó.

Nas casas, pouca conversa e muito silêncio, uma expectativa sem fim.
O relógio até parece que parou no tempo. Os cochichos de pé de orelha e o piado da coruja se confundem.

Certamente que a região do Nordeste brasileiro não tem lobos, mas, o vento que corta as montanhas envia sons uivantes, pelo menos é o que o cérebro do povo registra. Pode até ser ilusão por conta do medo e do nervosismo.

Há momentos em que o silêncio toma conta do ambiente e é exatamente essa calmaria que gela a espinha quando ouvem o som de um graveto seco sendo quebrado, como se houvesse ali um animal a espreita, pronto para atacar. Poderia até ser um dos cães procurando abrigo, mas não se vê muita coisa lá fora. Ninguém é louco pra ficar olhando pelas frestas das janelas. Quanto mais distante delas, melhor.

Na casa estão João lobo, Júlio, Gina, Rita e um caçador amigo que veio pedir abrigo nesta noite. É normal que ninguém se exponha nesse caso. Na mesa uma garrafa de cachaça pra aplacar o frio de madrugada e um bule de café, também tem umas tapiocas de goma e bolo frito feito no azeite dendê. O fogão a lenha, construído com barro vermelho mantém a chama acesa e continua a faiscar, pra manter quente o ambiente ou para fazer outro café ou um chá de erva cidreira mais tarde.

De repente um barulho de cascos no barro seco, tropel de cavalos ou bois que não se sabe ao certo, rompe o silêncio, deixa todos com o coração na mão. Rita se abraça com Gina e treme mais que vara verde. A cavalgada por assim dizer, aos poucos vai se distanciando até sumir completamente e novamente reina o mais absoluto silêncio.

O caçador avisa que vai tomar uma lapada de pinga. Nem ao menos respondem.
João Lobo havia montado uma grande fogueira com madeira seca e verde para durar mais tempo acesa, porém, deixou para acender o fogo na última hora que fecharam tudo. Nesse momento faz-se necessário que alguém vá lá fora e faça isso. A noite vira um breu depois da meia noite e ainda é muito cedo. O problema é que todos temem o pior, e em se tratando dessa criatura, existe a certeza de que ela é dotada de inteligência e poderia estar em qualquer lugar e, sabe se lá se ela já não estaria por ali nos arredores, na espreita, só aguardando o momento certo de atacar.

Júlio corajosamente diz que vai lá, mas seu pai diz que não, que prefere ir. O caçador agradecido pela acolhida fala que ele é quem vai, uma vez que se sente protegido e terá os dois na retaguarda. Então, decidem que tome cuidado, que fique atento. Abrem a porta com muita cautela, mostram-lhe uma lamparina feita de lata e um caneco de querosene para molhar os gravetos e tocar fogo.

Sebastião caçador se prepara, coloca a espingarda atravessada nas costas, ajeita seu facão na cintura, dá uma pegada no chapéu de couro, tira uma peia de fumo, põe na boca, masca um pouquinho, cospe, pega a lamparina acesa, com a outra mão leva o caneco de querosene, abrem a porta bem devagar e ele sai nas pontas dos pés. Fecham a porta bem ligeiro como quem diz – pronto, está entregue as cobras, ou melhor, ao bicho, mas ficam atentos.

Existe uma linha de pensamento que diz que quando é pra dar errado, basta começar errado. Pois não é que uma corrente de vento soprou forte naquela direção e apagou a lamparina um pouquinho antes de molhar os gravetos com o combustível. Aí o cabra se aperreou e gritou feito menino novo com medo de apanhar; pedindo pra trazerem um fósforo, ligeiro. João lobo viu que não tinha alternativa e disse que quem está no inferno é melhor se abraçar logo com o diabo e foi lá com a caixa de fósforos e uma vela. Sabia tanto que o querosene já havia secado que resolveu levar um punhado de pólvora pra acender o fogo com mais facilidade. Assim foi feito tranquilamente. Voltam para a casa mais rápido que o vento nas colinas. A fogueira agora vai clarear até de manhã.

Tudo volta aparentemente ao normal, após deixar todos com os nervos à flor da pele. A adrenalina continua, pois nem meia noite chegou ainda. Melhor agora seria fazer um lanche enquanto um mantinha a vigilância.

De repente uma pancada grande na porta e o grunhido de dor do cachorro faz com que todos fiquem em alerta e de armas em punhos. O cão não morreu e fica arquejando no pé da porta.

João Lobo sabe por experiência própria que foi um ataque de um bicho grande pra conseguir sacudir o cachorro daquele tamanho com tanta força contra a porta. Não podia fazer nada e não ia arriscar salvá-lo deixando os seus desprotegidos. Era melhor ficar trancado ali por mais tempo. Saiu verificando as portas e janelas. Checou tudo e voltou ao seu posto.

Novamente o silêncio é quebrado com o berro dos bodes e carneiros. Pensam eles que o monstro está atacando os outros animais e irá causar muitos estragos e prejuízos na propriedade.

A porta da cozinha é forçada, com batidas fortes. Já chega a ser uma tortura psicológica. Por algum tempo prevalece um barulho rosnado que mais parece um cão enfurecido sem latir. Ele ronda a casa de todos os lados e dá sopapos em cada janela e porta como quem procura um ponto fraco para entrar. Não há fragilidade, tudo foi reforçado.

Apesar de todas as travas, o bicho é astuto e de forma animal consegue a façanha de pular para o telhado, caminha sobre ele, quebrando telhas e ripas com seu peso. E como uma galinha cisca a terra em busca de pequenos grãos, ele também espalha telhas para todo lado. E de repente some. Deixa um vazio novamente como quem desiste e dá um alívio.

As nuvens passam em câmera lenta diante da lua gigante. Lua vermelha que só ela mesma é testemunha ao longo da história de tantas tragédias nesse contexto. E essa noite macabra parece não acabar mais.

Na casa, as frestas de luz mostram os estragos deixados pelo animal. Rita se apega a um crucifixo e começa a rezar um Pai Nosso que estais nos céus com muitas Aves Marias.

O homem é um ser temente a Deus. É temente também às criaturas malignas imaginárias da terra, e essa é sem sombra de dúvidas bem real para não se ter medo. Não se sabe ao certo o que ela quer, mas coisa boa não é. Ás vezes, nesses casos especificamente, o silêncio é uma armadilha que pode estar no contra-ataque.

O monstro agora atormenta o rebanho de ovelhas, procura um cabrito que possa carregar nas presas, e consegue. Grunhindo feio, corre e salta em cima da casa, somou peso para poder cair dentro, antes como que para deixar a situação mais apavorante, derruba o cabrito sem vida no meio da sala e provoca uma distração na família para logo em seguida arrebentar as ripas e pular pra dentro. O reboliço é total. O primeiro a ser atingido é Sebastião, o caçador, com um golpe mortal na garganta e já cai morto. Gina vendo o pai e o irmão correndo perigo de vida manda Rita se esconder em baixo da cama. Põe suas facas na cintura e empunha seu arco esperando uma oportunidade para atirar. Júlio também é atingido nas costelas ficando imóvel no chão. Não há como lutar com um animal daquele porte além de estar na penumbra, João lobo abre a porta rapidamente, pois sabe que lá fora, perto da fogueira há mais luz e fica mais fácil de atirar e não errar o alvo. Mas o lobisomem pareceu entender a jogada e não quis acompanha-lo, preferiu encarar Gina que agora estava a menos de três metros de frente pra ele e dessa distância não conseguia errar. Gina estava bem concentrada e sabia que se algo desse errado não haveria tempo para lançar outra flecha, então presumiu o ataque e soltou a flecha que o atingiu no peito esquerdo, bem no coração. O animal dessa vez soltou um grito doloroso e tentou escapar, sendo alvejado nas costas com mais de trinta caroços de chumbo grosso. Caiu ali mesmo, ao lado da fogueira. João Lobo pergunta à filha:
- Será que morreu?
- Claro! Para essa luta envenenei as flechas! Pois sabia que poderia não haver uma segunda chance.


E assim se cumpre a frase do animal, de não entrar na briga errada.

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