No interior
do sertão de meu Deus vivem poucas famílias com recursos, algumas criam bodes,
animais resistente às secas e que sobrevivem às intempéries do tempo.
São tantos
dissabores esperando que o céu se abra em chuva para aguar a terra seca e faça
brotar a esperança da fartura que perdura por anos castigando um povo já tão
sofrido e que faz milagres com o pouco que tem.
Não é culpa
de ninguém as portas do céu não se abrirem em mormaços para regar o grande amor
à vida que o nordestino tem. Eles, esses guerreiros da caatinga nem imaginam
que a situação climatológica se deve principalmente às ações dos seres de sua
espécie. Mas a vida segue, e a morte os fracos abate. Os fortes sobrevivem, com
dificuldade, mas vencem esse cansaço cotidiano, esperando alcançar dias
melhores.
Enquanto o
galo cantar anunciando um novo dia, há vida lá fora e é hora de levantar para
tirar água do poço para dar aos outros bichos, regar a pequena horta e dar de comer
a quem não sabe falar. É assim que vive o homem do campo, da roça.
João Lobo,
pai de Gina, cria uma centena de ovelhas, cabras e bodes. Vez ou outra mata
umas para levar aos açougues da cidade, para garantir seu sustento e de sua
família, além de comprar outros bens e mantimentos. Apesar de não ser uma
família rica, tem lá suas posses e um bom coração, até ajuda seus vizinhos mais
próximos, como é o caso de seu Manoel, pai de Rita, amiga de sua filha.
Certa vez
João Lobo matou doze bodes, tirou o couro, espichou com varas finas e
pontiagudas e as colocou ao sol para secar. Em seguida, separou aquele mais
gordo e guardou para si, para mais tarde fazer seu banquete com três ou quatro
famílias de seus afilhados, o restante colocou em sua carroça, pediu para Júlio
botar sentido nas coisas e nos bichos, que ele iria à cidade com sua filha
Gina. Não demoraria e tão logo vendesse tudo voltaria. E partiu.
Gina o
acompanha montada a cavalo.
O caminho já
era praticamente conhecido pelo burro de carga da carroça e pelo outro animal.
Nem precisava bater com chibata e tampouco esporar.
De longe
avistaram dois cavaleiros que vinham em sua direção. Não eram tão altos e
fortes, mas eram bem mal encarados e jamais vistos por aquelas bandas. João
Lobo faz um gesto com as pontas dos dedos no chapéu de couro e os cumprimenta,
pois não há malícia em seu coração.
- Bom dia!
Disse João Lobo.
Os homens
apenas o cumprimentaram da mesma forma com a mão no chapéu, e se as pedras do
caminho falaram, eles também falaram. Olharam mais para a Gina que não deixou
de encará-los. Aliás, A mocinha pensa assim: Se meu pai tem quase um palmo de
um olho pro outro e eu não tenho medo, imagina quem eu nem conheço. Gina tem a
qualidade de ser boa fisionomista, e isso basta.
Tocaram em
frente.
- Pai, o Senhor deu bom dia pra eles e os infelizes nem retribuíram.
- Filha, nem
tudo que é de graça dão valor. O sol nasce todo dia, mas muita gente continua
dormindo.
Assim a
viagem continua, sem muito diálogo.
A primeira
casa que os sujeitos chegam é a de João Lobo, embora eles não saibam de
quem se trata, veem que ali tem fartura e acham que o que tem por
lá poderá ser compartilhado de outra forma, ou seja, o assalto. Desapeiam de
suas montarias e cumprimentam Júlio; pede água pra matar a sede, afinal, o
calor tá de rachar e não teriam outra desculpa melhor para abordar o rapaz. Júlio os recebe e os manda entrar e vai ao
pote pegar água com um “coco” de alumínio que estava pendurado na bilheira.
Os homens
observam tudo e se entreolham como quem confirma que ali “vai dar pé”.
Sem muita
conversa, agridem Júlio que foi pego desprevenido. Dão-lhe uma coronhada de
espingarda bate-bucha, e o deixam desacordado. Começam o roubo pelas peles que
já estão enxutas e valem muito no mercado da cidade. É moleza vender couro com
um desconto especial. Em dois cavalos dá pra levar pelo menos trinta peles em
cada um, enroladas e amarradas na garupa. Eles combinam que é melhor não matar
o rapaz e apenas deixa-lo amarrado. Assim o fazem e vão embora com o objeto do
furto. Vão pelo mesmo caminho sem nenhum constrangimento, comentando a
facilidade que tiveram e debochando da fragilidade do local, até prometem um
para o outro que poderiam voltar, uma vez que poderiam levar muito mais de uma
vez só.
Dizem que a
ocasião faz o ladrão. Há controvérsia. O ladrão já
nasce ladrão, assim como certos artistas. Todo roubo premeditado, não é senão uma ação planejada. Já há a
maldade ali, o que no caso é o inverso de quem tem talentos para
executar o bem.
Com uma
carga leve como é esse o caso, as montarias que suportam quase o dobro de seu
peso, vão de encontro ao seu destino sem muito esforço nem cansaço. Já dá pra avistar as
primeiras casas da cidade sem forçar o galope.
João lobo e
sua filha também já venderam tudo e estão voltando, passam uns pelos outros na
entrada da cidade, sem cumprimentos e um pouco mais rápido dessa vez.
Gina como
sempre, parece realmente ter um sexto sentido e fica com a pulga atrás da
orelha. Olha para os forasteiros como que tentando entender o motivo de tanta
pressa. Nada comenta com seu pai, apenas avisa que vai chegar primeiro em casa
e atiça as esporas para que o animal chegue mais rápido. Vem mil pensamentos em
sua cabeça.
Já na casa,
amarra o cavalo rapidamente, pois estranha que seu irmão não esteja lhes
esperando. Procura-o por toda a casa, em todos os cômodos e vai encontra-lo
amarrado no pequeno celeiro, todo roxo de pancadas. Tira-lhes a mordaça e
leva-o para o quarto. Cuida rapidamente de suas feridas, ouve sua história e avisa que seu pai
está chegando.
Monta seu cavalo e volta para a cidade. Ainda encontra
seu pai no caminho e fala que esqueceu uma coisa e voltará logo.
A distância
é medida pelo tamanho que diminui e à proporção que ela corre e a poeira cobre.
Há pressa de
encontrar seus desafetos. Logo chegará ao mercado, à feira, e claro que ela
sabe quem paga bem pelas peles, sempre foi lá com seu pai. Conhece todos
naquele lugar.
- Bom dia,
Seu Joaquim! O Senhor por acaso, comprou couros hoje de dois sujeitos assim mal
encarados?
- Bom dia,
minha filha! Não! Até porque hoje não apurei quase nada.
- Mas o Senhor
Chegou a ver essas criaturas por aqui?
- Vi! Eles
me ofereceram! Mas o menino me disse, que quem comprou foi o Zé Pezão, ele
compra tudo pela metade do preço por aqui.
Gina não
perde tempo.
- Bom dia
Seu Zé!
- Bom dia,
Regina!
- Seu Zé, me
diga uma coisa, o Senhor comprou umas peles de dois homens da cara feia?
- Olhe minha
filha, se eu fosse escolher comprar pela cara feia ou bonita, eu estava era
morto!
Gina já
sabendo da má índole de Zé Pezão, pipoca a mão na mesa e torna a perguntar:
- O Senhor comprou
ou não?
- Calma!
Comprei. Comprei.
- E para
onde eles foram?
- Olha! Eles
falaram que estão arranchados na pousada da Dona Luzia, aquela perto do riacho.
É a mais barata mesmo.
- Eu ainda
voltarei por aqui.
Gina é
ligeira igual piaba.
- Bom dia,
Dona Luzia! Estou procurando por dois homens...
- Dois
homens, é filha?
- Sim. Dois
caboclos, assim mal encarados!
- Veja bem,
os dois novatos que chegaram ontem, já pagaram e saíram, nem esquentaram lugar.
- Foram em
que rumo Dona Luzia?
- Foram para
o cabaré de Maria Preta, do outro lado da ponte. Estavam muito alegres! Mostrando os dentes mais que
jumento quando relincha.
- Festa boa
demais, dura pouco! Muito obrigada, Dona Luzia!
- Eita bando
de cão ligeiro da porra! Mas eu encontro eles nem que tenha que ir buscar no
inferno.
Dá logo de
cara com Maria Preta na entrada.
- Bom dia! A
Senhora deve ser Dona Maria, certo?
- Bom dia!
Maria Preta, a seu dispor!
- Quero
saber se tem dois homens assim da cara feia, por aqui?
- Tem homem
do jeito que minha flor quiser...
- Não estou
procurando homem... quero dizer estou, estou procurando esses, por outro motivo.
- Filha,
chegaram aqui agorinha dois sujeitos, pediram a chave de um quarto lá atrás, um
que dá acesso para o riacho. Pediram duas meninas novas. Até pensei que você
poderia servir, enquanto arranjo a outra.
- Vou lhe
poupar dessa vez. Mas lhe digo, das cobras não corto a língua, arranco a
cabeça! Vou lá falar com eles.
Gina bate na
porta, por duas vezes e espera. O forasteiro vem.
- Bom dia
meu anjo negro! Rapaz, nessa espelunca as coisas funcionam rápido, viu? Entre
logo, meu bem!
- Opa! Tenho
a impressão que lhe conheço! Disse o outro.
- Conhece
não, moço! Aliás, era preferível que vocês nunca tivessem me visto.
- Anja
negra, só porque você desceu do paraíso, não significa que tenha tratamento
diferenciado.
- Vamos
deixar de papo furado. Onde está o dinheiro das peles que vocês roubaram?
- O quê? Ah!
Agora me lembrei de você pirralha!
Gina não
está muito confortável. Talvez tenha feito abordagem num local não muito
estratégico. Mas está de frente para os dois e isso basta.
- Onde está
o dinheiro? Vocês me entregam e vou embora. Bem simples assim.
- Mata ela!
Vamos, mata ela!
Antes que
pudesse dizer ou repetir a frase, uma faca certeira atravessa sua perna direita.
O outro já indignado atraca-se com Gina, tentando enforcá-la!
- Vai morrer
desgraçada!
Gina havia
treinado com Júlio e aprendeu a se defender desse golpe. Retirou rapidamente
uma faca da cintura e acertou uma artéria da virilha. Deu uma torcida na lâmina
para garantir e logo se desvencilha do homem. O primeiro homem ainda sangrando é
nocauteado com uma cadeira de madeira.
Recupera o dinheiro e ao sair...
- Não
demorou, quase nada, moça! Já terminou? Indaga Maria Preta.
- Já!
- Os homens
ficaram satisfeitos?
- Não
reclamaram. Estão satisfeitos! É como sempre digo: melhor não entrar na briga
errada...
Gina passa
na venda de Zé Pezão, devolve o valor, recupera as peles e volta para casa.
- Zé, toma
muito cuidado com os negócios que tu anda fazendo. Observa as notícias. Espero
que daqui pra frente, tu honres teus compromissos de forma honesta.
- Está bem
dona Regina. Pode deixar. Tenha um bom dia.
Dizem que
quem mente rouba. Gina sabe disso.
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