segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

GINA, A Caçadora III - Roubo de peles.

No interior do sertão de meu Deus vivem poucas famílias com recursos, algumas criam bodes, animais resistente às secas e que sobrevivem às intempéries do tempo.

São tantos dissabores esperando que o céu se abra em chuva para aguar a terra seca e faça brotar a esperança da fartura que perdura por anos castigando um povo já tão sofrido e que faz milagres com o pouco que tem.

Não é culpa de ninguém as portas do céu não se abrirem em mormaços para regar o grande amor à vida que o nordestino tem. Eles, esses guerreiros da caatinga nem imaginam que a situação climatológica se deve principalmente às ações dos seres de sua espécie. Mas a vida segue, e a morte os fracos abate. Os fortes sobrevivem, com dificuldade, mas vencem esse cansaço cotidiano, esperando alcançar dias melhores.

Enquanto o galo cantar anunciando um novo dia, há vida lá fora e é hora de levantar para tirar água do poço para dar aos outros bichos, regar a pequena horta e dar de comer a quem não sabe falar. É assim que vive o homem do campo, da roça.
João Lobo, pai de Gina, cria uma centena de ovelhas, cabras e bodes. Vez ou outra mata umas para levar aos açougues da cidade, para garantir seu sustento e de sua família, além de comprar outros bens e mantimentos. Apesar de não ser uma família rica, tem lá suas posses e um bom coração, até ajuda seus vizinhos mais próximos, como é o caso de seu Manoel, pai de Rita, amiga de sua filha.


Certa vez João Lobo matou doze bodes, tirou o couro, espichou com varas finas e pontiagudas e as colocou ao sol para secar. Em seguida, separou aquele mais gordo e guardou para si, para mais tarde fazer seu banquete com três ou quatro famílias de seus afilhados, o restante colocou em sua carroça, pediu para Júlio botar sentido nas coisas e nos bichos, que ele iria à cidade com sua filha Gina. Não demoraria e tão logo vendesse tudo voltaria. E partiu. 

Gina o acompanha montada a cavalo. 

O caminho já era praticamente conhecido pelo burro de carga da carroça e pelo outro animal. Nem precisava bater com chibata e tampouco esporar.

De longe avistaram dois cavaleiros que vinham em sua direção. Não eram tão altos e fortes, mas eram bem mal encarados e jamais vistos por aquelas bandas. João Lobo faz um gesto com as pontas dos dedos no chapéu de couro e os cumprimenta, pois não há malícia em seu coração.
- Bom dia! Disse João Lobo.

Os homens apenas o cumprimentaram da mesma forma com a mão no chapéu, e se as pedras do caminho falaram, eles também falaram. Olharam mais para a Gina que não deixou de encará-los. Aliás, A mocinha pensa assim: Se meu pai tem quase um palmo de um olho pro outro e eu não tenho medo, imagina quem eu nem conheço. Gina tem a qualidade de ser boa fisionomista, e isso basta.

Tocaram em frente.
- Pai, o Senhor deu bom dia pra eles e os infelizes nem retribuíram.
- Filha, nem tudo que é de graça dão valor. O sol nasce todo dia, mas muita gente continua dormindo.

Assim a viagem continua, sem muito diálogo.

A primeira casa que os sujeitos chegam é a de João Lobo, embora eles não saibam de quem se trata, veem que ali tem fartura e acham que o que tem por lá poderá ser compartilhado de outra forma, ou seja, o assalto. Desapeiam de suas montarias e cumprimentam Júlio; pede água pra matar a sede, afinal, o calor tá de rachar e não teriam outra desculpa melhor para abordar o rapaz.  Júlio os recebe e os manda entrar e vai ao pote pegar água com um “coco” de alumínio que estava pendurado na bilheira.
Os homens observam tudo e se entreolham como quem confirma que ali “vai dar pé”.

Sem muita conversa, agridem Júlio que foi pego desprevenido. Dão-lhe uma coronhada de espingarda bate-bucha, e o deixam desacordado. Começam o roubo pelas peles que já estão enxutas e valem muito no mercado da cidade. É moleza vender couro com um desconto especial. Em dois cavalos dá pra levar pelo menos trinta peles em cada um, enroladas e amarradas na garupa. Eles combinam que é melhor não matar o rapaz e apenas deixa-lo amarrado. Assim o fazem e vão embora com o objeto do furto. Vão pelo mesmo caminho sem nenhum constrangimento, comentando a facilidade que tiveram e debochando da fragilidade do local, até prometem um para o outro que poderiam voltar, uma vez que poderiam levar muito mais de uma vez só.

Dizem que a ocasião faz o ladrão. Há controvérsia. O ladrão já nasce ladrão, assim como certos artistas. Todo roubo premeditado, não é senão uma ação planejada. Já há a maldade ali, o que no caso é o inverso de quem tem talentos para executar o bem.

Com uma carga leve como é esse o caso, as montarias que suportam quase o dobro de seu peso, vão de encontro ao seu destino sem muito esforço nem cansaço. Já dá pra avistar as primeiras casas da cidade sem forçar o galope.

João lobo e sua filha também já venderam tudo e estão voltando, passam uns pelos outros na entrada da cidade, sem cumprimentos e um pouco mais rápido dessa vez. 

Gina como sempre, parece realmente ter um sexto sentido e fica com a pulga atrás da orelha. Olha para os forasteiros como que tentando entender o motivo de tanta pressa. Nada comenta com seu pai, apenas avisa que vai chegar primeiro em casa e atiça as esporas para que o animal chegue mais rápido. Vem mil pensamentos em sua cabeça.
Já na casa, amarra o cavalo rapidamente, pois estranha que seu irmão não esteja lhes esperando. Procura-o por toda a casa, em todos os cômodos e vai encontra-lo amarrado no pequeno celeiro, todo roxo de pancadas. Tira-lhes a mordaça e leva-o para o quarto. Cuida rapidamente de suas feridas, ouve sua história e avisa que seu pai está chegando.

Monta seu cavalo e volta para a cidade. Ainda encontra seu pai no caminho e fala que esqueceu uma coisa e voltará logo.

A distância é medida pelo tamanho que diminui e à proporção que ela corre e a poeira cobre.

Há pressa de encontrar seus desafetos. Logo chegará ao mercado, à feira, e claro que ela sabe quem paga bem pelas peles, sempre foi lá com seu pai. Conhece todos naquele lugar.
- Bom dia, Seu Joaquim! O Senhor por acaso, comprou couros hoje de dois sujeitos assim mal encarados?
- Bom dia, minha filha! Não! Até porque hoje não apurei quase nada.
- Mas o Senhor Chegou a ver essas criaturas por aqui?
- Vi! Eles me ofereceram! Mas o menino me disse, que quem comprou foi o Zé Pezão, ele compra tudo pela metade do preço por aqui.
Gina não perde tempo.
- Bom dia Seu Zé!
- Bom dia, Regina!
- Seu Zé, me diga uma coisa, o Senhor comprou umas peles de dois homens da cara feia?
- Olhe minha filha, se eu fosse escolher comprar pela cara feia ou bonita, eu estava era morto!
Gina já sabendo da má índole de Zé Pezão, pipoca a mão na mesa e torna a perguntar:
- O Senhor comprou ou não?
- Calma! Comprei. Comprei.
- E para onde eles foram?
- Olha! Eles falaram que estão arranchados na pousada da Dona Luzia, aquela perto do riacho. É a mais barata mesmo.
- Eu ainda voltarei por aqui.
Gina é ligeira igual piaba.
- Bom dia, Dona Luzia! Estou procurando por dois homens...
- Dois homens, é filha?
- Sim. Dois caboclos, assim mal encarados!
- Veja bem, os dois novatos que chegaram ontem, já pagaram e saíram, nem esquentaram lugar.
- Foram em que rumo Dona Luzia?
- Foram para o cabaré de Maria Preta, do outro lado da ponte. Estavam  muito alegres! Mostrando os dentes mais que jumento quando relincha.
- Festa boa demais, dura pouco! Muito obrigada, Dona Luzia!
- Eita bando de cão ligeiro da porra! Mas eu encontro eles nem que tenha que ir buscar no inferno.
Dá logo de cara com Maria Preta na entrada.
- Bom dia! A Senhora deve ser Dona Maria, certo?
- Bom dia! Maria Preta, a seu dispor!
- Quero saber se tem dois homens assim da cara feia, por aqui?
- Tem homem do jeito que minha flor quiser...
- Não estou procurando homem...  quero dizer estou,  estou procurando esses, por outro motivo.
- Filha, chegaram aqui agorinha dois sujeitos, pediram a chave de um quarto lá atrás, um que dá acesso para o riacho. Pediram duas meninas novas. Até pensei que você poderia servir, enquanto arranjo a outra.
- Vou lhe poupar dessa vez. Mas lhe digo, das cobras não corto a língua, arranco a cabeça! Vou lá falar com eles.
Gina bate na porta, por duas vezes e espera. O forasteiro vem.
- Bom dia meu anjo negro! Rapaz, nessa espelunca as coisas funcionam rápido, viu? Entre logo, meu bem!
- Opa! Tenho a impressão que lhe conheço! Disse o outro.
- Conhece não, moço! Aliás, era preferível que vocês nunca tivessem me visto.
- Anja negra, só porque você desceu do paraíso, não significa que tenha tratamento diferenciado.
- Vamos deixar de papo furado. Onde está o dinheiro das peles que vocês roubaram?
- O quê? Ah! Agora me lembrei de você pirralha!
Gina não está muito confortável. Talvez tenha feito abordagem num local não muito estratégico. Mas está de frente para os dois e isso basta.
- Onde está o dinheiro? Vocês me entregam e vou embora. Bem simples assim.
- Mata ela! Vamos, mata ela!
Antes que pudesse dizer ou repetir a frase, uma faca certeira atravessa sua perna direita. O outro já indignado atraca-se com Gina, tentando enforcá-la!
- Vai morrer desgraçada!

Gina havia treinado com Júlio e aprendeu a se defender desse golpe. Retirou rapidamente uma faca da cintura e acertou uma artéria da virilha. Deu uma torcida na lâmina para garantir e logo se desvencilha do homem. O primeiro homem ainda sangrando é nocauteado com uma cadeira de madeira.

Recupera o dinheiro e ao sair...
- Não demorou, quase nada, moça! Já terminou? Indaga Maria Preta.
- Já!
- Os homens ficaram satisfeitos?
- Não reclamaram. Estão satisfeitos! É como sempre digo: melhor não entrar na briga errada...

Gina passa na venda de Zé Pezão, devolve o valor, recupera as peles e volta para casa.
- Zé, toma muito cuidado com os negócios que tu anda fazendo. Observa as notícias. Espero que daqui pra frente, tu honres teus compromissos de forma honesta.
- Está bem dona Regina. Pode deixar. Tenha um bom dia.


Dizem que quem mente rouba. Gina sabe disso.

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