sábado, 31 de dezembro de 2016

GINA IV, A Caçadora - A Festa!

No interior contam muitos casos, muitas histórias, alguns viram lendas e fazem parte do folclore brasileiro. É um costume das pessoas de se entreter um pouco nas portas das casas a boquinha da noite.

João Lobo matou 12 bodes e deixou o mais gordo para assar nos espetos em frente a sua casa, os outros animais, vendeu no mercado, também matou umas leitoas e umas galinhas pra completar o cardápio. Desde que sua mulher faleceu que ele vive assim, meio desolado, e para compensar, junta os amigos vez ou outra em torno de um churrasco para aliviar sua dor. Convidou compadres e comadres para uma noite animada, afinal Deus lhes deu muitos recursos com o suor de seu rosto. Tem até uns amigos violeiros que são repentistas. A festa vara a noite e só termina quando o galo anuncia um novo dia.

- Já que estão todos aqui, não falta mais ninguém, sejam bem vindos! Comam e bebam à vontade meus amigos, compadres e comadres, meninos e meninas. Tem leitoa assada, tem bode assando e tem galinha ao molho! Ah! E tem uma cachacinha também, para os mais afoitos. Falou em alto e bom som o dono da casa. Nesse momento os repentistas dedilham suas violas e começam a cantar e versejar as agonias do sertão, as pegas de bois, os namoros escondidos, as paixões da vida. Tudo rimado em uma linguagem cordelista e arrastada do interior.


Seu Manoel, como é mais íntimo de João Lobo, puxa conversa.
- Compadre a festa tá animada. Vou até tomar uma talargada dessa branquinha de cana e tirar o gosto com a leitoa.
- Faça isso compadre! Essa é da boa e sai rasgando de goela abaixo. Tem um limão galego ali também. Espere aí, deixe-me pedir para o Júlio cuidar mais dos espetos de bode. Já volto.
- Vá. Quando voltar quero lhe contar uns boatos que andam falando na cidade.
Por incrível que pareça, tendo pinga e tira-gosto desse preço, repentista canta a noite toda.

Uma grande fogueira é mantida acesa com madeira verde. Dois lampiões a querosene também iluminam o local.

Gina e Rita confabulam do mesmo assunto. São como carne e unha, pra onde uma vai, a outra está do lado.

Júlio, apesar de ser o churrasqueiro, é um olho no bode e outro na moça; não tira os olhos de Rosa, uma galega bonita, torneada, afilhada de seu pai. E o mais importante, ela retribui e fica toda derretida quando ele leva um espeto de carne pra ela.
Dona Joana, esposa de seu Manoel, troca uns dedos de prosa com a mãe de Rosa. Jogam conversa fora - coisas do cotidiano.

Está as mil maravilhas a festa! Comes e bebes a vontade. A música troando e os homens bebericando a caninha da roça. Pedro do Bidoca, pai de Rosa é sanfoneiro arretado. Se duvidar toca igual ao Luiz Gonzaga, e está só esperando os violeiros fazerem uma pausa pra puxar o fole. Chico Pitomba é o zabumbeiro e Manoel Grilo, o triangueiro. Um trio de forró pé de serra pra ninguém botar defeito. A festa promete amanhecer o dia.

João Lobo, como bom anfitrião, aperta a mão de todo mundo, dá tapinha nas costas, fala com um e com outro e volta a conversar com Seu Manoel.

- Qual é o boato que comentam por aí na cidade, Compadre?
- Meu amigo, você sabe que o povo tem a língua maior que o corpo. Dizem que a polícia está investigando a morte de dois homens que foram mortos no Cassino do Chico Preá há alguns dias.
- Essa polícia daqui e bosta é a mesma coisa. Quantos crimes continuam impunes?
- Pois é compadre. E tem mais, por último, o mais recente, encontraram dois corpos boiando no riacho, lá perto do cabaré da Maria Preta.
- Vixe! E quem são esses desafortunados, que Deus os tenha?
- Compadre, ninguém sabe, ninguém viu de fato quem matou. E os bichos são tudo de fora, uma raça ruim, não sabe? Nenhum tem família por essas bandas. Tudo bandido.
- Deve ser tudo ladrão mesmo. Gente que presta não anda caçando confusão.
- É, compadre. O negócio é sério. Desculpe-me por estar falando disso num momento tão importante de festa na sua casa.
- Esquente a moringa não, compadre. Amigos são pra essas coisas. Pra alertar os acontecidos, quanto mais quando é bem próximo da gente. O que mais andam dizendo por lá?
- Tem uns comentários aí na boca do povo, que encontraram uma ossada dum homem na metade do caminho pra cidade. Na verdade, o corpo foi descoberto pelos cachorros, aí, a polícia veio no local e recolheu os restos mortais.
- Compadre eu vou lhe dizer, você está muito bem informado.
Pois é, eu de vez em quando, vou jogar baralho, tomar umas no bar e mercearia de Expedito e lá a gente fica sabendo das coisas. Tem um tal de Cabo Messias, que dá com a língua nos dentes. O homem sabe de tudo que acontece por aqui.
- O que mais ele contou?
- Que eu saiba, é que estão investigando. Mas, como ele mesmo diz, a delegacia tá falida, não tem dinheiro nem pra botar gasolina no fusca que é a única viatura que tem. O delegado mesmo tem uma preguiça danada, e além do mais só tem esse cabo e dois soldados lá. Assim fica difícil solucionar as coisas.
- É. Quer saber? Vamos aproveitar a festa. Chega dessa conversa. Até eu vou tomar uma lapada dessa branquinha. Vamos lá compadre, se anime!
- Vamos! Vamos sim!
Pedro Bidoca já está nos acordes e grita de lá:
- O tocador quer beber, minha gente! Mas antes de tudo, o tocador quer tocar! Vamos começar de “Asa Branca” em homenagem ao saudoso mestre Luiz Gonzaga.
- Arrocha sanfoneiro! Grita um.
- Arregaça zabumbeiro! Grita outro.

Enquanto isso, os repentistas se esbaldam enchendo o bucho de cachaça e carne assada. Uns mais afoitos, até tiram as mulheres pra dançar no terreiro de chão batido. A poeira e a fumaça, formam uma nuvem, o vento da meia noite dissipa em parte, mas alguns já estão animados demais para parar agora.

Chega um cavaleiro, desse da montaria e corre ligeiro para dar uma notícia a João Lobo.
- Seu João quero falar uma coisa séria com o Senhor.
- Pois fale meu filho! Deixe de agonia.
- Bom, é o seguinte...
- Cabra, tu está pra botar os bofes pra fora. Vai ali primeiro e bebe água.
- Não Seu João. Eu estou bem. O Senhor conheceu a Dona Maria Setembrina? Aquela velhinha que morava só, naquela choupana de palha?
- Sim, filho. Quem nessa região não conhecia Setembrina, a rezadeira e cartomante?
- Pois é. Ela só fez o bem a todos. Eu vinha duma festa e quando desci a ladeira avistei aquele clarão, quando vi, era a casa dela em chamas. E ela morreu queimada. Não teve como se salvar. Como aqui é a casa mais perto, corri pra cá.
- Ela pode ter deixado alguma vela acesa ou uma lamparina, sei lá. Não dá pra imaginar como isso aconteceu. Vamos lá só amanhã. A essa altura o fogo com esse vento já devorou tudo. Hoje é festa aqui. Vá se juntar ao povo e beba alguma coisa. Aí tem bastante comida, se tiver com fome.
- Beber não quero, mas vou comer.
- Vai! Vai, fique a vontade!

Os cachorros nesse momento brigam ferozmente, rasgando um braço humano. Júlio grita para parar a festa.

- Pai, o que está acontecendo hoje? Parem de tocar. Tomem aquilo dos cachorros, é um pedaço de gente.
- O que diabo é isso, meu Deus? Só pode ser coisa do demônio. Fala uma senhorinha pra outra.
- Mulher, tá aí que nunca vi uma coisa dessas acontecer aqui, e olha que faz anos que Seu João faz festa.
- Chega! Por hoje chega. Já passa da meia noite umas duas horas. Isso nunca aconteceu. Vamos parar por aqui. Sei que vocês todos irão entender. Amanhã vamos tentar encontrar respostas.
- Isso é um horror! Nunca em minha vida tinha visto tal coisa. Fala a galega Rosa.

Depois de muita conversa e contornada a situação, alguns ainda ficam, dormirão no alpendre, outros se despedem e vão para suas casas.
Rita havia tido o consentimento dos pais para dormir na casa da amiga e por isso podiam conversar o resto da noite.

- Gina, desde que cheguei que você foge da conversa. Já passei tempo demais lá fora. Comi tanto que estou empanturrada. Você não deu o ar de sua graça lá fora. Agora que está só a gente aqui, me conta o que aprontou mais cedo.
- Nada. Não fiz nada.
- Olha! Eu te conheço não é de hoje. Você tem que pelo menos saber disfarçar. E conta logo que já tá é pra amanhecer o dia.
- Você não tem jeito mesmo. Vou te contar. Matei outro homem hoje. Um bandido mesquinho. Eu nem fui atrás. Só fiquei indignada com a covardia daquele monstro.
- Vixe! Como foi isso? Desembucha aí, amiga.
- Rita, cada dia que passa, sinto que minha alma não terá salvação. Estou ficando louca, eu acho. Não consigo ter pena desses malfeitores, além do mais, se eles forem presos, amanhã estarão soltos cometendo os mesmos crimes. Por isso, é melhor eliminá-los.
- Deixa de me enrolar e conta o que aconteceu.
- Tá bom. Seguinte: O sol nem tinha se posto ainda quando saí procurando umas madeirinhas linheiras pra fazer minhas flechas. Eu queria fazer uma demonstração na festa.
- Eita! O povo iria gostar demais.
- Pois é. Mas aconteceu o pior.
- O que foi que aconteceu? Conta!
- Se você deixar, eu conto. Eu já tinha andado por aí tudo. Passei bem perto da casa de Setembrina e vi que tinha um homem indo no rumo de lá, então, resolvi me esconder e fiquei observando de longe.
- Setembrina é uma bruxa?
- Não é não. Ela bota cartas, lê a mão, faz benzeduras nas pessoas com a arca caída, essas coisas, assim como os ciganos fazem.
- Ah! Entendi. Pois continua.
- Sim, aí o homem entrou na casa dela e...
- Minha “irmã” estou ansiosa!
- Pois bem, demorou pouco, ouvi os gritos dela e nas pontas dos pés olhei de perto, pela janela. O caboclo já estava enforcando a velhinha.
- E o que você fez?
- Bom, eu ouvi ele dizer: - Velha maldita! Mando você ler minha mão e você me diz que vou morrer hoje. Você é quem vai morrer, e ainda vou tocar fogo nessa joça. Fiquei indignada com aquilo, mas o que me deixou revoltada foi ouvir da boca dele dizer que já tinha estuprado meninas novas, brancas, negras e já carregava nas costas sete crimes, um a mais, um a menos não ia fazer diferença. Sufocou a coitada até morrer, e depois ateou fogo na casa.
- Ave Maria! Que monstro!
- Pois é. Então corri pra frente da casa, me posicionei em frente, e esperei ele sair. Atirei nos peitos dele por duas vezes.  Até hoje ele deve tá queimando no fogo do inferno.
- Mulher tua consciência tá tranquila?
- Sei lá, às vezes tenho pesadelos. Mas é o tipo da coisa, posso me arrepender mais tarde e pedir perdão.
- Minha boca é um túmulo.
- Espero que seja, Rita!

A verdade é que ninguém faz nada escondido, e, não existe crime perfeito.

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