No interior
contam muitos casos, muitas histórias, alguns viram lendas e fazem parte do
folclore brasileiro. É um costume das pessoas de se entreter um pouco nas
portas das casas a boquinha da noite.
João Lobo
matou 12 bodes e deixou o mais gordo para assar nos espetos em frente a sua
casa, os outros animais, vendeu no mercado, também matou umas leitoas e umas
galinhas pra completar o cardápio. Desde que sua mulher faleceu que ele vive
assim, meio desolado, e para compensar, junta os amigos vez ou outra em torno
de um churrasco para aliviar sua dor. Convidou compadres e comadres para uma
noite animada, afinal Deus lhes deu muitos recursos com o suor de seu rosto. Tem
até uns amigos violeiros que são repentistas. A festa vara a noite e só termina
quando o galo anuncia um novo dia.
- Já que
estão todos aqui, não falta mais ninguém, sejam bem vindos! Comam e bebam à
vontade meus amigos, compadres e comadres, meninos e meninas. Tem leitoa
assada, tem bode assando e tem galinha ao molho! Ah! E tem uma cachacinha
também, para os mais afoitos. Falou em alto e bom som o dono da casa. Nesse
momento os repentistas dedilham suas violas e começam a cantar e versejar as
agonias do sertão, as pegas de bois, os namoros escondidos, as paixões da vida.
Tudo rimado em uma linguagem cordelista e arrastada do interior.
Seu Manoel,
como é mais íntimo de João Lobo, puxa conversa.
- Compadre a
festa tá animada. Vou até tomar uma talargada dessa branquinha de cana e tirar
o gosto com a leitoa.
- Faça isso
compadre! Essa é da boa e sai rasgando de goela abaixo. Tem um limão galego ali
também. Espere aí, deixe-me pedir para o Júlio cuidar mais dos espetos de bode.
Já volto.
- Vá. Quando
voltar quero lhe contar uns boatos que andam falando na cidade.
Por incrível
que pareça, tendo pinga e tira-gosto desse preço, repentista canta a noite toda.
Uma grande
fogueira é mantida acesa com madeira verde. Dois lampiões a querosene também
iluminam o local.
Gina e Rita
confabulam do mesmo assunto. São como carne e unha, pra onde uma vai, a outra
está do lado.
Júlio,
apesar de ser o churrasqueiro, é um olho no bode e outro na moça; não tira os
olhos de Rosa, uma galega bonita, torneada, afilhada de seu pai. E o mais
importante, ela retribui e fica toda derretida quando ele leva um espeto de
carne pra ela.
Dona Joana,
esposa de seu Manoel, troca uns dedos de prosa com a mãe de Rosa. Jogam
conversa fora - coisas do cotidiano.
Está as mil
maravilhas a festa! Comes e bebes a vontade. A música troando e os homens
bebericando a caninha da roça. Pedro do Bidoca, pai de Rosa é sanfoneiro
arretado. Se duvidar toca igual ao Luiz Gonzaga, e está só esperando os
violeiros fazerem uma pausa pra puxar o fole. Chico Pitomba é o zabumbeiro e
Manoel Grilo, o triangueiro. Um trio de forró pé de serra pra ninguém botar
defeito. A festa promete amanhecer o dia.
João Lobo,
como bom anfitrião, aperta a mão de todo mundo, dá tapinha nas costas, fala com
um e com outro e volta a conversar com Seu Manoel.
- Qual é o boato
que comentam por aí na cidade, Compadre?
- Meu amigo,
você sabe que o povo tem a língua maior que o corpo. Dizem que a polícia está
investigando a morte de dois homens que foram mortos no Cassino do Chico Preá
há alguns dias.
- Essa
polícia daqui e bosta é a mesma coisa. Quantos crimes continuam impunes?
- Pois é
compadre. E tem mais, por último, o mais recente, encontraram dois corpos
boiando no riacho, lá perto do cabaré da Maria Preta.
- Vixe! E
quem são esses desafortunados, que Deus os tenha?
- Compadre,
ninguém sabe, ninguém viu de fato quem matou. E os bichos são tudo de fora, uma
raça ruim, não sabe? Nenhum tem família por essas bandas. Tudo bandido.
- Deve ser
tudo ladrão mesmo. Gente que presta não anda caçando confusão.
- É,
compadre. O negócio é sério. Desculpe-me por estar falando disso num momento
tão importante de festa na sua casa.
- Esquente a
moringa não, compadre. Amigos são pra essas coisas. Pra alertar os acontecidos,
quanto mais quando é bem próximo da gente. O que mais andam dizendo por lá?
- Tem uns
comentários aí na boca do povo, que encontraram uma ossada dum homem na metade
do caminho pra cidade. Na verdade, o corpo foi descoberto pelos cachorros, aí,
a polícia veio no local e recolheu os restos mortais.
- Compadre
eu vou lhe dizer, você está muito bem informado.
Pois é, eu
de vez em quando, vou jogar baralho, tomar umas no bar e mercearia de Expedito
e lá a gente fica sabendo das coisas. Tem um tal de Cabo Messias, que dá com a
língua nos dentes. O homem sabe de tudo que acontece por aqui.
- O que mais
ele contou?
- Que eu
saiba, é que estão investigando. Mas, como ele mesmo diz, a delegacia tá
falida, não tem dinheiro nem pra botar gasolina no fusca que é a única viatura
que tem. O delegado mesmo tem uma preguiça danada, e além do mais só tem esse
cabo e dois soldados lá. Assim fica difícil solucionar as coisas.
- É. Quer
saber? Vamos aproveitar a festa. Chega dessa conversa. Até eu vou tomar uma
lapada dessa branquinha. Vamos lá compadre, se anime!
- Vamos!
Vamos sim!
Pedro Bidoca
já está nos acordes e grita de lá:
- O tocador
quer beber, minha gente! Mas antes de tudo, o tocador quer tocar! Vamos começar
de “Asa Branca” em homenagem ao saudoso mestre Luiz Gonzaga.
- Arrocha
sanfoneiro! Grita um.
- Arregaça
zabumbeiro! Grita outro.
Enquanto
isso, os repentistas se esbaldam enchendo o bucho de cachaça e carne assada.
Uns mais afoitos, até tiram as mulheres pra dançar no terreiro de chão batido.
A poeira e a fumaça, formam uma nuvem, o vento da meia noite dissipa em parte,
mas alguns já estão animados demais para parar agora.
Chega um
cavaleiro, desse da montaria e corre ligeiro para dar uma notícia a João Lobo.
- Seu João
quero falar uma coisa séria com o Senhor.
- Pois fale
meu filho! Deixe de agonia.
- Bom, é o
seguinte...
- Cabra, tu
está pra botar os bofes pra fora. Vai ali primeiro e bebe água.
- Não Seu
João. Eu estou bem. O Senhor conheceu a Dona Maria Setembrina? Aquela velhinha
que morava só, naquela choupana de palha?
- Sim,
filho. Quem nessa região não conhecia Setembrina, a rezadeira e cartomante?
- Pois é.
Ela só fez o bem a todos. Eu vinha duma festa e quando desci a ladeira avistei
aquele clarão, quando vi, era a casa dela em chamas. E ela morreu queimada. Não
teve como se salvar. Como aqui é a casa mais perto, corri pra cá.
- Ela pode
ter deixado alguma vela acesa ou uma lamparina, sei lá. Não dá pra imaginar
como isso aconteceu. Vamos lá só amanhã. A essa altura o fogo com esse vento já
devorou tudo. Hoje é festa aqui. Vá se juntar ao povo e beba alguma coisa. Aí
tem bastante comida, se tiver com fome.
- Beber não
quero, mas vou comer.
- Vai! Vai,
fique a vontade!
Os cachorros
nesse momento brigam ferozmente, rasgando um braço humano. Júlio grita para
parar a festa.
- Pai, o que
está acontecendo hoje? Parem de tocar. Tomem aquilo dos cachorros, é um pedaço
de gente.
- O que
diabo é isso, meu Deus? Só pode ser coisa do demônio. Fala uma senhorinha pra
outra.
- Mulher, tá
aí que nunca vi uma coisa dessas acontecer aqui, e olha que faz anos que Seu João
faz festa.
- Chega! Por
hoje chega. Já passa da meia noite umas duas horas. Isso nunca aconteceu. Vamos
parar por aqui. Sei que vocês todos irão entender. Amanhã vamos tentar
encontrar respostas.
- Isso é um
horror! Nunca em minha vida tinha visto tal coisa. Fala a galega Rosa.
Depois de
muita conversa e contornada a situação, alguns ainda ficam, dormirão no
alpendre, outros se despedem e vão para suas casas.
Rita havia
tido o consentimento dos pais para dormir na casa da amiga e por isso podiam
conversar o resto da noite.
- Gina,
desde que cheguei que você foge da conversa. Já passei tempo demais lá fora.
Comi tanto que estou empanturrada. Você não deu o ar de sua graça lá fora.
Agora que está só a gente aqui, me conta o que aprontou mais cedo.
- Nada. Não
fiz nada.
- Olha! Eu
te conheço não é de hoje. Você tem que pelo menos saber disfarçar. E conta logo
que já tá é pra amanhecer o dia.
- Você não
tem jeito mesmo. Vou te contar. Matei outro homem hoje. Um bandido mesquinho.
Eu nem fui atrás. Só fiquei indignada com a covardia daquele monstro.
- Vixe! Como
foi isso? Desembucha aí, amiga.
- Rita, cada
dia que passa, sinto que minha alma não terá salvação. Estou ficando louca, eu
acho. Não consigo ter pena desses malfeitores, além do mais, se eles forem presos,
amanhã estarão soltos cometendo os mesmos crimes. Por isso, é melhor
eliminá-los.
- Deixa de
me enrolar e conta o que aconteceu.
- Tá bom.
Seguinte: O sol nem tinha se posto ainda quando saí procurando umas madeirinhas
linheiras pra fazer minhas flechas. Eu queria fazer uma demonstração na festa.
- Eita! O
povo iria gostar demais.
- Pois é.
Mas aconteceu o pior.
- O que foi
que aconteceu? Conta!
- Se você
deixar, eu conto. Eu já tinha andado por aí tudo. Passei bem perto da casa de Setembrina
e vi que tinha um homem indo no rumo de lá, então, resolvi me esconder e fiquei
observando de longe.
- Setembrina
é uma bruxa?
- Não é não.
Ela bota cartas, lê a mão, faz benzeduras nas pessoas com a arca caída, essas
coisas, assim como os ciganos fazem.
- Ah! Entendi.
Pois continua.
- Sim, aí o
homem entrou na casa dela e...
- Minha “irmã”
estou ansiosa!
- Pois bem,
demorou pouco, ouvi os gritos dela e nas pontas dos pés olhei de perto, pela
janela. O caboclo já estava enforcando a velhinha.
- E o que
você fez?
- Bom, eu
ouvi ele dizer: - Velha maldita! Mando você ler minha mão e você me diz que vou
morrer hoje. Você é quem vai morrer, e ainda vou tocar fogo nessa joça. Fiquei
indignada com aquilo, mas o que me deixou revoltada foi ouvir da boca dele
dizer que já tinha estuprado meninas novas, brancas, negras e já carregava nas
costas sete crimes, um a mais, um a menos não ia fazer diferença. Sufocou a
coitada até morrer, e depois ateou fogo na casa.
- Ave Maria!
Que monstro!
- Pois é.
Então corri pra frente da casa, me posicionei em frente, e esperei ele sair.
Atirei nos peitos dele por duas vezes.
Até hoje ele deve tá queimando no fogo do inferno.
- Mulher tua
consciência tá tranquila?
- Sei lá, às
vezes tenho pesadelos. Mas é o tipo da coisa, posso me arrepender mais tarde e
pedir perdão.
- Minha boca
é um túmulo.
- Espero que
seja, Rita!
A verdade é
que ninguém faz nada escondido, e, não existe crime perfeito.
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