Ao amanhecer, o sol timidamente surge por trás das nuvens
e clareia deixando visível os estragos da tempestade. Galhos quebrados e
árvores partidas ao meio pela fúria dos raios. As águas escorreram para o
riacho, mas a terra molhada impossibilita os animais rastejantes de se
locomoverem. Borboletas coloridas saem dos casulos para apreciar a liberdade.
Os pássaros voam e pousam em galhos mais altos, e cantam na copa das árvores.
As flores agora transformam a paisagem em paraíso.
Vinte e
quatro horas se passaram depois daquele tiro de rifle.
Ainda muito
cedo nesta manhã, um homem alto, usando um chapéu de maça, trajando calça
jeans, camisa xadrez de mangas longas, cachecol no pescoço, barba por fazer e
de olhos azuis bem arregalados, embrenha-se pela floresta que conhecesse como a
palma da sua mão. Ele carrega um rifle com mira de longo alcance, porém, a arma
é carregada com dardos tranquilizantes. Depois de muito caminhar, para, aguça a
audição, tenta diferenciar os sons e fareja como um lobo o rastro de sangue
deixado pela fera nas folhagens. A mente racional procura o motivo da lógica e
encontra após um quilômetro, o cadáver com a marca das garras da fera do lado
esquerdo do corpo caído, quase engolido pela lama fina arrastada pela
correnteza das águas da chuva. As costelas e o tórax da vítima estão
dilacerados e as pontas das unhas do animal cortou parte do coração como se
fosse uma lâmina de estilete na manteiga. O homem apanha do chão o rifle do
caçador, põe a tiracolo, retira a munição dos bolsos da vítima e deixa para
trás o que ele mais queria: o coração intacto, mesmo que já estivesse morto.
Olhando a linha
do horizonte, onde está a cidade, e até onde a vista alcança não dá para ver a
torre da igreja, o ponto de referência mais alto. Uma cortina de fumaça
provocada pela neblina impede essa visão.
Distante
dali, a porta se abre e David Emanuel entra. A casa aparentemente é uma
residência normal construída no estilo colonial de muito bom gosto, está
alicerçada em uma grande propriedade e em seu interior há no subsolo um porão
com paredes impenetráveis que serve como laboratório científico e é mantido em
sigilo para quem o visitar. Distante da cidade alguns poucos quilômetros a casa
tem um ar de castelo mal assombrado em sua arquitetura. Pouquíssimas pessoas
vão ali, a não ser que tenham um compromisso muito sério com o Dr. David. Na
sala de estar há animais e aves de muitas espécies, empalhados, fixos nas
paredes. Colunas de mármore seguram o teto de onde desce um castiçal folheada a
prata. No piso de cerâmica antiga bem lustrada uma pele de urso marrom decora a
lateral do grande sofá de couro e para completar, uma mesa de madeira de um
metro por setenta centímetros com duas gavetas exibe algumas garrafas de licor,
vinho e uísque.
David
Emanuel coloca o chapéu no cabide, pendura o rifle com dardos numa espécie de
estante que ele mesmo fez e onde há outras armas de sua coleção, entre elas
espadas e adagas. Depois desce até o porão e guarda o rifle e as munições que
trouxe da floresta. Volta para a sala de estar, serve uma dose de sua bebida
preferida, degusta, acende um charuto ao tempo que retira o cachecol e o coloca
nos ombros do sofá e com a taça na mão esquerda, senta-se numa poltrona e
põe-se a pensar por um longo tempo.
(...)
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