Gina passeia
pela cidade, pelas praças, e resolve ir à igreja fazer uma oração. Na verdade
ela só foi à igreja duas vezes: uma quando foi batizada e a outra na missa de
sétimo dia da sua mãe. Demora pouco mais que os outros e ao sair, percebe que
um menino está muito triste sentado na calçada. Senta ao seu lado e puxa
conversa. O garoto que tem pouco mais de doze anos não dá a mínima atenção. Não
compartilha com o que ela fala. Seu pensamento está distante. Ela não é de
desistir facilmente e parte para outra tática.
- Lá vem o
carrinho do picolé. Nesse calor é bom! Quer um? Eu pago.
O menino
meio desconfiado, aceita, mas não fala nada. Apenas acena com a cabeça.
Gina insiste
mais um pouco, mesmo sabendo que tem de cuidar de seus afazeres lá no povoado.
- Vamos lá,
garoto, gostou do picolé?
- Gostei!
- Cadê seu
pai e sua mãe?
- Moro com
meu padrasto. Ele bebe muita cachaça, se embriaga e me bate. Não posso voltar
agora pra casa, a essa hora ele já bebeu.
- Quer ir lá
para casa comigo?
- Não posso.
- Por quê?
- Sabe o que
é um coroinha?
-Sei. Você
ajuda o Padre na missa?
- Sim.
- Por que
você não conta para ele sobre seu pai?
- É pior.
- Por que é
pior?
- O Padre é
quem dá dinheiro para meu pai.
- E por que
ele faz isso? Seu pai não é quem poderia ajudar a igreja.
- Acho que
sim.
- Então!
Qual é o motivo dele dar dinheiro para seu pai?
- Moça, preciso ir...
- Para onde
você vai?
- Não sei.
- Como é seu
nome?
- Gabriel
Sousa.
- Gabriel,
onde você mora?
- Na última
casa, daquela rua. Bem em frente a um curral de bois. Uma casa amarela da
calçada alta.
- Tudo bem!
Se eu vier à missa de domingo, você fala comigo? Seremos amigos?
- Sim, falo.
- Então,
fica com Deus!
Quando Gina
vira as costas, Gabriel corre e lhe dá um abraço bem apertado. Ele sentiu que
poderia confiar nela.
Despedem-se
e cada um segue seu rumo.
Já em casa,
no almoço, Gina comenta com a família o ocorrido.
- Júlio, aconteceu
uma coisa hoje.
- O que foi?
- Vi um
menino triste e meu coração pediu que falasse com ele.
- E daí,
Gina? Tem um monte de crianças sem pai, sem mãe ou abandonadas nessa cidade.
- Sim, tem,
eu sei, mas esse garoto é um caso à parte.
- Como você
sabe disso?
Seu João
Lobo entra na conversa.
- É melhor
vocês comerem. Tem muita coisa para fazer. Já não basta os problemas daqui?
- Pai, eu vi
nos olhos dele, que tem algo errado. Ele disse que o Padre dá dinheiro para o
pai dele.
- Oxe! Ele
só está ajudando mais um cristão. Isso é normal. Mas, porque o Santo homem iria
dar dinheiro assim?
- Não sei
Júlio. É isso que me deixa intrigada.
- Gente,
vamos cuidar da labuta daqui, que o Padre cuida da Igreja e dos fiéis dele.
- Pai, vamos
ouvir a Gina.
- Não tenho
mais nada para falar. Domingo irei para a missa novamente e depois me
encontrarei com ele!
- Vai virar
beata agora, irmã?
- Júlio
deixe sua irmã em paz.
-
Terminaram? Vou lavar os pratos só pra dar uma mãozinha pra vocês!
- Eu vou te
ajudar aqui limpando a casa.
- Júlio,
ajude-a, que vou campear umas vacas que estão perdidas, desgarradas por aí.
- Tá bom,
pai.
- Júlio,
nesse angu tem caroço...
- Te mete
com religião não, Regina. Deixa esse povo para lá.
- Júlio, eu
desconfio que há algo errado com aquele menino. Não engulo essa de Padre dar
dinheiro para homem, quanto mais quando a família não tem a mãe e ele é um
cachaceiro.
- Ave Maria!
Aqui em casa a nossa mãe não está presente, faz tempo.
- É. Você
tem razão até certo ponto, mas o pai é um homem digno, trabalhador e nunca
levantou a mão para nenhum de nós. A nossa mãe, até onde eu sei, também foi
muito honesta e exemplar.
- Vamos
falar nisso mais não. Você sabe que quando lembro, dá vontade de chorar.
- Tá bom
então, homem sensível. Vamos terminar essa labuta aqui.
Enquanto
isso, na Casa Paroquial o Padre Ângelo chama todos os coroinhas para uma
reunião.
- Já que
estão todos aqui, vamos fazer a escalação dessa semana, certo? O Gabriel dorme hoje na Casa Paroquial, os
outros estão dispensados para irem para casa. O Padre Francisco já está com a
relação de quem terá folga esse mês. Temos muitos pães aí, e cada um de vocês
pode levar uns para casa.
Os garotos
levantam-se da mesa e correm para os cestos de pães, pegam o que convém, e vão
embora.
- Gabriel,
vá se lavar, faça sua refeição e vá para o quarto, enquanto tenho uma conversa
com Padre Francisco.
- Sim,
Senhor!
- Francisco,
tu chegou aqui primeiro, ninguém desconfia dessa falcatrua. Já faz um ano que
celebra missa. Você é um homem "preparado". Já temos um bom dinheiro guardado. No
final do ano vamos repassar essa Igreja para outros padres.
- Concordo
com você! De anjo você não tem nada, além de pedófilo, você assassinou um padre
e tomou o lugar dele. Vamos continuar com o plano.
- Meu
caríssimo Ângelo, não sei qual a necessidade que teve de você fazer essas
observações a meu respeito. Melhor ter cuidado com o que fala.
- É só para
lembrar, que eu planejo e você executa. Pensei ter dito antes que passaríamos
três anos em cada lugar. Então você vem com essa proposta. Assim, passa por
cima das minhas regras.
- Não vou
discutir com você. Irei fazer o que você disser. Desconsidere tudo que falei.
- Já até esqueci.
Vai dormir com teu garoto, e olha, esse menino tá esquisito. Eu não aprovo
isso. Em outras circunstâncias eu te mataria.
- Bom saber
disso. Nós não estamos nos entendendo muito bem. Boa noite, Padre! Vou me
divertir um pouco.
- Deus tenha
misericórdia da tua alma, e duvido muito que ele tenha.
- Tu cuida
da tua vida, que cuido da minha. Ah, e mais uma vez, cuidado com o que você
fala.
- Isso é uma
ameaça, Padre?
- Não. Vai,
vai...
Os dias
passam e chega o final de semana. Um lindo domingo ensolarado. Logo os
coroinhas começam os preparativos para missa.
- Hoje vamos
falar da parábola do bom filho que retorna à casa do pai...
Após a
celebração, Gina é a primeira que sai e vai para um ponto do adro da igreja
esperar por Gabriel que logo se apresenta como prometeu.
- E aí
Gabriel Souza, tudo bem?
- Não. Não
está tudo bem.
- O que
houve agora?
- Quero te
contar uma coisa. Um segredo. Posso confiar mesmo em você?
- Claro! Vim
aqui pra te ajudar.
- Então
vamos para a praça. Lá é melhor.
- Vamos sim!
À sombra de
uma mangueira, o menino conta tudo o que se passa naquela casa paroquial. Diz
também ter ouvido sobre o outro Padre que, na verdade, não foi transferido para
outra cidade e sim assassinado pelos atuais e setá enterrado no quintal..
- Isso que
você me disse é muito grave. Quem mais sabe dessa história?
- Só eu ouvi
o que eles tramaram, mas já contei para os outros garotos.
- Quero
conversar com vocês todos juntos. Pode ser?
- Pode. Vou
falar com eles e marcar uma horinha dessas.
- Amanhã,
então, certo?
- Certo! Mas
o que você vai fazer?
- Não se
preocupe. Vamos tomar providências. Isso vai acabar logo.
- Tomara
mesmo. Eu não aguento mais.
- Seu pai
também será preso por conivência com esses falsos padres.
- Não me
importo. Já não sinto mais nada por ele também.
- Certo.
Tenho um plano. Amanhã depois da reunião, vocês todos terão que se esconder e
não retornarão à igreja. Deixem comigo que farei o resto.
- Mas o que
você vai fazer, mesmo?
- Gabriel,
meu anjo, confie em mim. Vai dar tudo certo. E não faltem ao nosso encontro.
- Tá bom.
Acredito em você! Agora tenho que ir.
- Vai com
Deus!
No dia seguinte,
após a reunião, só Gina saberá onde encontrará os garotos. Sua primeira visita
é à igreja...
- Bom dia,
Padre!
- Bom dia,
minha filha. Seja bem vinda à casa de Deus! Em que posso lhe ajudar?
- Padre, sei
que não é um momento apropriado, mas preciso me confessar.
- Bem, a
casa do Senhor está aberta a todos independente de horário. Vamos ao
confessionário.
- Vamos.
Obrigado pela sua atenção.
- Conte-me
seus pecados, minha filha.
- Padre, eu
tenho muitos. Daria um livro. São tantos que até eu tenho medo.
- Comece a
contar e lhe darei uma penitência..
- Todos os
meus pecados foram cometidos por justiça. Agora vem a parte interessante. Conte-me os seus.
- Minha
filha, eu não entendi.
- Molestar
crianças, seduzir e praticar ato sexual com menor é crime.
- Do que você
está falando?
- Sei também
que vocês assassinaram o Pároco dessa igreja e tomaram o lugar dele.
Estão
enganando uma cidade inteira. Acaba aqui e agora essa farsa.
- Quem é
você? Quem te mandou aqui?
Antes que o
falso Padre possa tomar qualquer decisão, uma corda laça seu pescoço e o
enforca. Gina sempre age com planejamento.
- Você nunca
irá descobrir.
Gina vai à
delegacia contar que viu o Padre enforcado no confessionário e como testemunhas,
outros fiéis e os garotos, que confirmam as desavenças entre os dois e os
crimes de pedofilia. O comparsa vai preso como cúmplice dos crimes e leva a
culpa por ter assassinado o Padre. O pai de Gabriel também é indiciado e preso.
Gina leva o
garoto para morar em sua casa por um bom tempo e conta à sua família que está tudo bem. Era só
um mal entendido, mas explica que o pai do garoto é um beberrão e por isso ele passará
uns dias em sua casa.
- Se cada um
fizer um pouco pelo outro, teremos um mundo melhor. Gina.
Outra
jornada nos aguarda...
Carlos Holanda
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