sexta-feira, 16 de março de 2018

GINA - A Justiceira I


         

         O espaço é surpreendente e espetacular. Múltiplos eventos acontecem mutuamente. Corpos celestes locomovem-se em várias direções simultaneamente. Meteoritos descem veloz para a terra, embora não causem danos. Meteoros com trajetórias rumo a este planeta vez ou outra assustam a humanidade, apesar de não saírem de suas rotas, passam de raspão. Cometas com caldas luminosas partem de um extremo a outro e exibem-se para nós como se fossem estrelas cadentes. Impressionam-nos com sua magnitude. Tempestades cósmicas acontecem frequentemente; algumas são devastadoras e tão perigosas que, se ocorrer no sol, elimina a vida na terra. Outras estrelas nascem e morrem.
         Os planetas orbitam independentes, sincronizados, e nós, simples mortais, não temos o poder de ver tais fenômenos naturais do universo.
         Com tantos eventos na galáxia e longe de nossos olhos, porque só a raça humana sente-se tão privilegiada a ponto de empinar o nariz e achar que sobrevive única e exclusivamente no universo, nesta vasta imensidão?
- “Quando não voamos em pensamentos, são as estradas que nos levam a outros lugares. O destino, às vezes incerto, impõe condições severas e nem sempre estamos preparados para algumas situações das quais não temos noção. Todos os caminhos nos levam a algum lugar, mas há outros sem volta, assim como há os becos sem saídas. Destrua essas muralhas e conseguirá passar. Acredite no seu poder interior, e quando sentir-se sufocada por algum motivo, busque a reserva máxima da sua força no mais íntimo do seu ser e vencerá. Elimine todas as barreiras e obstáculos ao seu redor e a sua frente. Veja como a águia, lá do alto, que enxerga longe e nunca desista de seus objetivos. Sempre haverá saída para tudo. Haja com determinação sempre. Sua vida irá mudar, seja decisiva quando voltar, transcenda o medo...
O tempo pode ser seu inimigo. Os quatro elementos não serão”. - Rita! Lembrei-me dessa história de motivação e mistérios, contada há algum tempo, como se fosse hoje.
- Quem contou para você, Gina?
- Fui ao mercado fazer umas compras, e lá havia um homem na calçada, encapuzado, com um cajado na mão, pensei tratar-se de um mendigo, dei-lhe uma ajuda em dinheiro e quando já ia sair, ele me pediu para esperar um momento e sem mais nem menos, falou o que acabei de contar.
- Você já o tinha visto antes?
- Não. Nunca! E olha que conheço essa cidade como a palma da minha mão.
- E depois amiga, o que aconteceu?
- Bem, fiquei meio atordoada, agradeci e saí. Ainda perguntei seu nome, mas ele não disse. Rapidamente levantou-se, virou as costas e foi embora. Nunca mais o vi.
- Quando foi isso, Gina?
- Há mais ou menos trinta dias. Fiquei pensativa com o que ele disse. Voltei lá várias vezes e não o vi mais. Tomou um chá de sumiço.
- Você vai fazer o que agora, com relação a isso?
- Minha amiga, juro que não sei. Guardo de certa forma sua fisionomia, apesar de estar encoberta pelo capuz, vi um olhar penetrante e sério, como se quisesse me dizer algo mais. Agora tudo que sei é que o que sou está em mim e guardarei essa mensagem para sempre.
Júlio bate à porta do quarto e avisa que o pai de Rita veio buscá-la.
- Rita, seu pai está lhe esperando. Ele já conversou um bom tempo com o meu pai e acho que ele está com pressa.
- Diga-lhe que já estou indo, por favor!
- Está bem, vou avisá-lo.
- É, Gina, tenho que ir, já está escurecendo. Domingo virei passar o dia aqui e a gente conversa mais, está bem?
- Tudo bem. Estarei aqui, lhe esperando. Vou mandar fazer uma galinha ao molho pra nós. Ah, quando você vier, irei customizar umas roupas para nós. Agora vou ler um livro e dormir mais cedo hoje.
Gina a acompanha até a varanda da casa.
- Está bem. Até domingo!
- Tchau, amiga!
Rita e o pai despedem-se de João Lobo e Júlio, montam seus cavalos e partem.
- Boa menina, a Rita! Diz Júlio para o pai.
- É. Gosto muito dela!
Na sala de estar, João lobo se esparrama no sofá; Júlio liga a televisão e coloca em volume baixo, para assistir ao noticiário.
- Gina, agora que são oito horas e você já vai dormir?
- Vou ler um pouco, confesso que hoje me cansei, daqui a pouco durmo, para acordar cedo amanhã.
- Certo. Boa noite!
- Boa noite! Até amanhã, se Deus quiser!
No quarto, a moça acomoda-se na cama, abre o livro onde parou de ler e continua. Algum tempo depois, boceja, ajeita o travesseiro, puxa o lençol, e ainda sonolenta, emborca o livro ao seu lado, desliga o abajur e dorme.
Cavalos selvagens correm à luz do dia em extensa pradaria, entram por longos caminhos ladeados por enormes rochedos; mais na frente, atravessam um riacho a galope e logo se juntam numa planície verdejante para pastarem. Entre eles está um enorme garanhão branco, que se destaca dos outros que são pretos, malhados e de tons marrom-castanho. O belo animal caminha lentamente em direção a Gina, que está ali, vestida de branco, sentada à sombra de uma frondosa mangueira. A moça levanta-se, e vai ao seu encontro para acaricia-lo. O animal como se fora treinado para aquele momento, espera que ela se aproxime, e agacha-se para que ela o monte. Pouco tempo depois, cavalgam por um cenário de florestas que mais parece ser das histórias medievais, envolta em brumas, correm sem parar até chegar às margens de um grande lago. Ficam os dois a fitar o horizonte distante por um longo tempo, imóveis, em silêncio; mistério e reciprocidade como se os dois vissem a mesma coisa onde não há nada. De repente, seis cavaleiros negros, com capas escuras e rostos mascarados, quebram o silêncio descendo a colina. Os animais fogosos relincham como se também estivessem enfurecidos.
O perigo é iminente, quando não estamos preparados para o agressor, e nesse caso, são muitos e bem armados.
Gina vestida de branco, confunde-se em silhueta com o  puro sangue visto de longe, embora um cachecol leve, vermelho, esvoaçante delineie e distinga a cabeça dela do corpo, é isso que de certa forma detalha na paisagem quase siberiana e opaca, nebulosa, por assim dizer.
Os cavaleiros negros como a noite sem luar cavalgam velozmente em sua direção, para atacá-la. Não existe contraste assim, a não ser o pouco brilho de suas lâminas, espadas que sibilam no ar. As lanças apontam para ela e o cavalo, rasgando o tempo e o espaço.
Gina percebe o tamanho da ameaça, mas não tem opção. À sua frente está um grande lago, que é provavelmente de águas profundas e geladas. Às suas costas, estão guerreiros violentos, avançando em sua direção. Estática e sem ação, cercada e desarmada, não há para onde correr ou como confrontar. Seria uma luta desigual e sem chance de vitória. O destino a desafia!
Nesse exato momento, do meio do lago, ergue-se um vulto sinistro e com ele, um bastão reluzente, com uma esfera branca que aponta para a água e começa a formar-se de maneira mágica uma ponte estreita de madeira. O velho acena para ela, chamando-a em sua direção e, com essa alternativa inesperada, Gina segue. O cavalo caminha até onde pode e sobe na ponte aproximando-se do ser misterioso. As tábuas que ficam para trás, somem, dificultando que os cavaleiros prossigam. Enfurecidos, às margens do lago, eles tomam as rédeas dos animais e retornam ao seu ponto de partida na floresta densa e somem na escuridão.
Montada no corcel, Gina está diante de um enigma, num círculo de madeira no meio do nada, em frente a um monge desconhecido que lhes salva. Não diz nada, e afunda lentamente, distanciando-se a ponto de sumir. Sem nada entender, apenas observa como se estivesse com as mãos atadas naquele pesadelo. Seria só imaginação?
E como num sonho que nenhum humano até hoje consegue controlar enquanto dorme, encontra-se novamente sentada à sombra da mangueira, olhando os cavalos selvagens pastar, lá longe. O magnífico cavalo branco já não se aproxima, e corre para bem mais distante. Os outros o acompanham.
Pouco a pouco, os animais somem e, inesperadamente a moça é surpreendida por homens típicos das cavernas, encapuzados, que abruptamente colocam um saco de um tecido mais parecido com estopa em sua cabeça e a amarram em um tronco. Eles dançam em círculo ao seu redor e gesticulam apontando lanças pontiagudas e machados afiados como se estivessem em um ritual macabro, mesmo com esse frenesi, não a tocam. Apenas pulam ao seu redor, inesperadamente surge uma mulher loira, bem vestida, de terno vermelho, com luvas e uma pistola com silenciador apontando para a moça, gesticulando para que retirem o capuz. Gina, imóvel, apenas observa, pois está amordaçada e amarrada ao tronco. E no momento em que a executiva pistoleira engatilha a arma, surge ao seu lado um samurai mascarado que em questão de milésimo de segundos desfecha um golpe mortal, apartando-lhe a cabeça do corpo.
Em segundos, Gina pisca e novamente está livre, não vendo mais nenhum de seus inimigos. E o que está exposto aos seus olhos já um pouco distante é o monge do lago com a lança na mão.
Encarar o desconhecido, o sobrenatural é de gelar a espinha e nem sempre é a coragem que vence. Isso não é corriqueiro para humanidade e é o que não entendemos que ficará sem resposta por longos anos neste mundo fictício e onírico.
Júlio bate na porta do quarto de Gina.
- São oito horas! Você vai passar a manhã dormindo? Acorda Gina! - ainda sonolenta consegue ver em seu universo de sonho, uma imagem holográfica, escrito na areia a frase: “Enfrente seus medos, reaja!”
- Já estou indo, Júlio! Vou só banhar...
No café da manhã, João Lobo entrega um envelope à sua filha.
- Um homem passou aqui bem cedo e trouxe esse envelope com seu nome.
- Que homem pai, não era o carteiro?
- Não, não era. Ele não usava farda dos Correios. O Júlio viu quando recebi. Apenas entregou. Parecia um daqueles monges tibetanos. Estranhei também!
- Pai você não falou com ele? O que ele disse?
- Filha, ele não disse nada. Não deu uma palavra. Chegou calado e saiu em silêncio.
- Sujeito mais estranho. A gente só olhou um para o outro e quando nos viramos ele havia sumido. - Disse Júlio.
- É, Gina. O homem evaporou!
- Nunca tinha visto uma pessoa vestida daquele jeito por essas bandas! O que diz aí nessa carta, filha?
- Diz apenas: “Vença seus medos, foque no objetivo e vença - Sua vertente é transcender o medo! Tenha coragem e elimine absurdos”.
- Está assinado por quem?
- Ninguém, pai.
- Danou-se! Não estou gostando do que vem acontecendo por aqui ultimamente, mas ainda bem que não é coisa ruim.
- Se eu contar o que sonhei vocês ficarão impressionados!
- Conta Gina! Atiça Júlio.
- Melhor não. Deixa para lá. Talvez eu tenha visto filme demais. Contarei depois.
- Está bem, então. Meninos, vamos trabalhar. Temos muito que fazer hoje. Vamos fazer o que tem que ser feito. O tempo castiga o homem que não labuta.
- É verdade pai. Confirma Júlio.
- Quero que você vá a cidade, na construtora do Osvaldo, contratar um trator de esteira para abrirmos uma estrada.
- Estrada para onde?
- Para a mina velha. Vou reativar o garimpo lá.
- Mas pai, depois de tantos anos.
- É isso mesmo. Depois de tantos anos, vamos cavar com mais discrição.
- Certo! É o senhor quem manda.
- Veja também um orçamento para um poço tubular. Lá, vamos precisar de água.
- Sim, senhor.
- E para finalizar as tarefas de hoje, faça orçamento também de fios, lâmpadas, bocais e tomadas. Você deve se lembrar de quanto precisa. Da primeira vez você fez isso.
- Lembro mais ou menos. Tenho uma caixa com um monte de recibos e notas fiscais antigas.
- Terminada a missão de hoje, amanhã, você vai na loja de material de construção e pré-moldados e encomende os postes para levar daqui da fazenda até lá.
- Pai, esse é um investimento alto.
- É sim, eu sei, mas venho planejando isso há meses.
- Então está certo. Vou agora.
- Gina, você que mexe aí na internet, quero que faça uma pesquisa para me atualizar.
- É sobre que, meu pai?
- Vamos entrar que já lhe ponho a par da situação.
O cenário nordestino no interior, em determinadas épocas do ano é desolador. O que se vê são cactos e arbustos mais resistentes ao tempo. O gado não tem o que pastar. A seca chega a atingir milhares de famílias e o que tem de bonito na imensidão das montanhas é posto no horizonte pela obra de Deus: o por do sol.
Todos os dias os galos da casa de Regina anunciam um novo amanhecer cheio de esperanças. E isso é o que o homem do campo tanto almeja; que São Pedro mande chuva para as terras áridas de barro vermelho, pois é de lá que é tirado o seu sustento e os dos bichos.
Existem dois poços na fazenda Paraíso, um com água pura vinda de um lençol freático mais profundo, e outro com água mais salinizada e barrenta que serve para irrigar as hortas e dar de beber aos animais. São terras férteis de uma grande propriedade e no inverno as planícies verdejantes e arborizadas sustentam a biodiversidade. No verão nem tanto. A situação climática do planeta reage e castiga os causadores de tantos danos à natureza.
Gina, como é mais conhecida no povoado, mora com seu pai desde que sua mãe faleceu, nunca arredou o pé daquela região. Negra, 18 anos, de seus 1,75 de altura tem personalidade forte, geniosa e decidida, sonha com dias melhores, apesar de tudo, em sua residência tem tudo do bom e do melhor que um pai pode dar aos seus filhos: computador conectado a internet, celular e outros acessórios que possam ajudar em seus estudos - é isso que seu pai proporciona de bem-estar e conhecimento aos filhos - seu irmão mais velho mora atualmente em são Paulo. O outro, o do meio, ajuda o pai na lavoura e nos afazeres da propriedade e assim, vivem enfrentando o pão que o diabo amassou nesse confim de mundo. Nas brenhas.
Júlio, seu irmão, também é forte e alto - acostumado a viver no mato, não teve estudos, nunca esteve numa sala de aula, mas em compensação ensinou sua irmã a caçar, atirar com arco e flechas, feitos artesanalmente com galhos de mofumbo, madeira inquebrável, boa para produzir um bom arco, em outras regiões é conhecida como carne seca. Aprendeu quando mais jovem, a atirar facas com seu pai, que o ensinou quando passou um determinado tempo trabalhando em um circo na cidade grande e assim, eles vivem nesse mundão de meu Deus, aprendendo com a natureza a lei do mais forte. Vez ou outra, ele treina com sua irmã lutas corporais e diz que ela tem que aprender a se defender sozinha...
A cidade mais próxima fica há alguns quilômetros e tem pouco mais de cem mil habitantes. A política ordinária é desigual e passa de pai para filho como em muitos lugares desse país – é uma herança sórdida resultante da compra de votos. A corrupção reina em todos os sentidos da esfera municipal, inclusive no sistema policial e na justiça; o povo não tem a quem recorrer numa cidade praticamente sem lei.
Numa dessas segundas-feiras de manhã bem cedo, Rita de 16 anos, segue a passos largos rumo à escolinha do povoado. É um longo percurso. Sozinha e confiante ela segue, pois sua família pobre sabe que o único caminho para sua integridade e sucesso é o saber. Acreditam nela.
Rita e Regina são amigas desde muito novas, moram a poucos quilômetros uma da outra e sempre se encontram no meio do caminho para chegarem juntas à escola, mas nesse dia, ela, por algum motivo, não veio. Rita não esperou. Prosseguiu.
Em determinado ponto do caminho, um homem começa a seguir seus passos, esperando o momento certo para atacá-la. Ele estreita a distância e a pega pelos cabelos. Maltrata, bate e a estupra no matagal. Não havia como se defender do brutamonte diante de tamanha violência. Após o ato bestial, ele promete voltar e se ela contar para alguém, ele a matará. Deixa-a, desfalecida, violentada e vai embora, após satisfazer seus instintos selvagens.
Quando já passava do meio dia, Rita sentindo-se triste, abalada, frustrada, chorosa e sem entender quase nada do que realmente havia acontecido, e com hematomas no rosto e por todo o corpo, retorna à sua casa. Não teria coragem de contar para seus pais, poderia até apanhar, tanto era a ignorância àquela época. Disse apenas que caiu e bateu com a cabeça. A família não engoliu a mentira contada, mas, aceitou por algum tempo. A “criança” chorou baixinho, a noite toda. Soluçou muito, sentindo as dores de não poder contar a ninguém. Seu estado psicológico foi afetado e nesse momento há muitas perguntas sem respostas.
Terça-feira bem cedo, vai ao encontro da amiga Regina, no local combinado de todos os dias, no meio do caminho. Dessa vez Regina já estava lá esperando. Após um longo silêncio Gina percebe que não está tudo bem e pergunta:
- Rita eu te conheço. Sei que você não está nada bem. O que aconteceu?
- Gina, eu estou bem. – Responde Rita cabisbaixa.
- Não! Não está! Conta logo. Seu pai lhe bateu?
- Não!
- Então me conta. Senão vai dar meio dia e a gente não sai daqui.
- Olha, vou te contar, mas você vai jurar pela alma da sua mãe que não vai dizer para ninguém. Nem para seu irmão nem para seu pai. Jura?
- Juro! Conte minha amiga. Pode confiar em mim. Sou sua única melhor amiga.
Rita com lágrimas nos olhos, envergonhada, narra todo o acontecido e é ouvida atentamente pela amiga que lhe promete que isso não ficará assim.
- Jurei não contar para ninguém e você vai jurar que não contará o que vou fazer. Vou tomar umas providências. Vamos embora. Você vai passar o resto do dia lá em casa. Vou pedir meu irmão para avisar seus pais que você vai dormir lá em casa e só voltará amanhã, depois da aula. Assim, a gente pode conversar mais. Tá bom?
- Tá!
E assim fazem.
- Rita, me diz uma coisa, ele deixou pistas de quando voltaria a atacar novamente?
- Mulher, não. Pode ser amanhã, como pode ser daqui a uma semana. Ele me ameaçou de morte, caso alguém mais saiba dessa história.
- Temos que bolar um plano. Ali é nosso caminho da escola.
- Gina, nem sei como te agradecer. Também não sei fazer nada. Sinto-me como se o mundo tivesse caído em minha cabeça. Nem namorado tenho e acontece uma coisa dessas comigo.
- Fique calma! Amanhã como todos os outros dias, daqui pra frente, sairemos juntas.
A semana passa normalmente, de idas e vindas. De casa pra escola e vice versa.
Um mês depois...
Uma bela segunda-feira ensolarada como sempre, Gina resolve esperar sua amiga um pouco mais cedo. As mulheres tem um Q de sexto sentido. Aliás, essa é uma sensibilidade entre tantos outros sentimentos. Entre tantos outros sentidos do ser humano e da vida.
- Oi amiga! Vamos?
- Não! Sabe Rita? Hoje acordei com um mau presságio. Quero que você vá em frente. Eu te sigo à distância.
- Oh! Mas, você é besta! Deixa disso, vamos!
- Faça o que eu estou dizendo. Esse cara te atacou há exatamente um mês. Como ele viu que não deu em nada, pode ser hoje. Vai. Vai.
- Tá bom. Eu vou! Mas você me deixou com medo agora.
- Vai. Deixa de conversa.
- Está bem!
Gina, como quem caça, sabe muito bem onde pisa para não espantar a caça. Segue a amiga por dentro do mato, sempre muito atenta.
Rita, trêmula como uma vara verde na palmeira, com as palavras da amiga, anda a passos largos, com olhos arregalados e com medo até da sombra. Vez ou outra dá uma olhadela para trás. O trauma não havia passado. É aterrorizante enfrentar a mesma situação duas vezes. São cicatrizes que não saram, pois não ficam na pele. Gina sabe que está na briga certa e sabe usar as armas.
É um longo caminho até a escola sem uma vivente alma para dar notícia de nada.
De repente, Rita é surpreendida pelo mesmo homem que a esperava e sarcasticamente lhe pergunta:
- Já está sarada para outra, boneca? - E enquanto fala, tapa sua boca com uma das mãos e a arrasta para dentro do mato - Dessa vez ele veio com uma corda - e a amarra. Rasga suas roupas e fica fazendo cenas eróticas com uma faca em torno de seu rosto, de seu pescoço. Mora dentro dele um animal pernicioso e insaciável pelo prazer de ver e sentir sua vítima sofrer. Um animal libidinoso e pervertido, incontrolável.
- Você é uma vagabunda! Sei que você não contou a ninguém por que gostou, e vai gostar mais hoje. Vou fazer isso para seu bem. Vou te contar uma coisinha, vadia. Eu cavei sua sepultura logo ali na frente. Não sou louco de te deixar viver dessa vez. Está me entendendo?
A garota geme e arregala os olhos de medo. Sua boca está apertada pelas mãos grosseiras do monstro.
Nesse momento, acreditando estar só com a menina, termina de rasgar suas roupas e deixa-a completamente nua. Prepara-se para se deitar sobre ela e quando vai iniciar o coito, de tão sádico que é não percebe que a menos de cinco metros Gina está lhe apontando uma flecha, com o arco bem rígido.
- Ei! Olha para mim cabra sem vergonha! Levanta! – e quando ele se vira e olha... - Está lembrado de mim? Quero acertar teu coração, se é que ele existe aí dentro!
- Mas de onde diabos tu saiu, menina? Eu sabia que já devia ter dado um jeito em ti. Vai cuidar da tua vida ou vou ter que te matar também.
- Chega de conversa! Isso acaba aqui!
A flecha corta o ar e atinge o peito esquerdo do homem, trespassa o coração. Não existe arma mais sutil e versátil quanto o arco e a flecha. E não precisa de silenciador como as armas de fogo. Uma só flechada é mortal, quando atirada por quem sabe.
O corpo grande cai sem vida sobre a garota. Gina empurra o corpo grande do homem para o lado e a desamarra. Pede para Rita se vestir com os trapos que ainda restam e, com a ajuda da menina, arrasta-o para a cova feita por ele mesmo, enterram-no e prometem o mais absoluto sigilo sobre esse caso.
Abraçam-se por um instante.
- Vamos embora, Rita!
- Vamos! Deixa só eu recuperar o fôlego. Mas quero que você me diga como sabia que ele viria hoje.
- Eu não tinha certeza, foi só intuição. Vou te contar depois. Vamos sair daqui, agora.
- Mas Gina...
- Sem mais. Juro que não queria fazer isso. Amanhã ou depois poderia ser eu ou outra pessoa, além do mais ele ia te matar, não tinha outro jeito. Vamos?
- Vamos! Mas você está bem?
- Estou! Quero dizer – mais ou menos.
- Não está com remorsos?
- Rita, por favor. Salvei nossas vidas. Conversaremos depois. Eu o matei em legítima defesa. Ou você acha que ele iria deixar nós duas vivas?
- Não sei. Estou em choque. Está bem vamos!
- Vamos lá para casa, agora.
- Vamos.
Difícil dizer alguma coisa que não seja julgar, condenar e aplicar a sentença – até porque são dois crimes - um de estupro e outro de assassinato. Por que a Gina não bateu na cabeça do estuprador com um pedaço de pau, já que estava por trás? Deixaria o homem desacordado para logo em seguida empreender fuga simplesmente e depois o denunciaria à polícia para entregar o caso à justiça. Essa seria a ideia mais lógica. O que uma pessoa sensata faria? Mas como foi dito: é fácil tirar conclusão apressada, mesmo sabendo que o sistema deste município é falido e corrupto. O que muita gente não sabe é que Gina foi uma das três vítimas desse mesmo monstro e a única sobrevivente - sua amiga seria a quarta – e para não ser morta aceitou o trato medíocre e também nunca contou a ninguém. Porquê? Por que, segundo sua própria investigação, ela descobriu que esse animal, serial killer, era um dos empregados pessoal do prefeito, logo, não daria em nada e sua vida e de sua família correria um risco maior, então, apenas esperou o momento certo para fazer justiça a seu modo. Não que Gina tenha deixado se consumar o ato quando o animal tentou estupra-la, pois no momento da agressão, mesmo por baixo do agressor, lutou com unhas e dentes e conseguiu soltar-se, foi quando o atingiu com uma pedrada na cabeça, deixando-o inconsciente, o que lhes deu tempo para fugir.
“Senhor Delegado, dois corpos das garotas desaparecidas há menos de um ano e do assassino estuprador, estão mapeadas no verso desse bilhete. Peço-lhes apenas que entreguem os restos mortais às famílias para que possam fazer os funerais e aplacar suas dores. Eu seria mais uma vítima se não tivesse escapado.” Gina finalizou o documento em sua impressora e, para não deixar suas digitais, usou luvas cirúrgicas; logo após deletou o arquivo do HD, queimou a impressora e enterrou bem distante. Não enviou pelos correios – seria quase que obrigatório ter um remetente, então, disfarçada com um capuz, preferiu deixar pessoalmente embaixo da porta de entrada da delegacia, na calada noite, sem que ninguém a visse. Antes, teve o cuidado de ir ao túmulo do bandido, desenterrá-lo e trocar sua flecha por uma estaca de madeira para não gerar provas contra ela mesma. O que ela fez com a flecha? Queimou bem longe dali. Cabe à polícia investigar os crimes...
Dizem que quem comete um crime, sempre volta ao local. Esse não seria um caso isolado. Rita apesar de ser uma criança e sua melhor amiga, sabia de tudo e Gina não queria que esse pequeno detalhe levantasse qualquer suspeita, não que ela se sentisse tão culpada. Em sua consciência esse seria um trabalho que a polícia deveria ter feito, não o de executar, mas o de investigar, porém, foi o que não aconteceu. Simplesmente arquivaram, enquanto famílias inteiras sofriam. Às vezes, a justiça dos homens é falha ou demorada – e não questionamos aqui a justiça de Deus ou a de quem faz com as próprias mãos; em alguns casos não há saída, principalmente quando se trata de pessoas negras, de vida ou morte, aliás, quantos casos mais iriam acontecer se não fosse posto um fim, mesmo que desta forma?
Dois dias depois de ler o bilhete anônimo, o delegado da cidade de São Francisco, usando de suas atribuições legais, reabre o caso das garotas desaparecidas e manda instaurar Inquérito policial para terminar a Investigação criminal.
A perícia forence foi chamada ao local para fazer os exames legais e a remoção dos ossos. Utilizou Spray borrifado com líquido luminescente para tentar decifrar o caso. Um detetive que de ver tudo às claras, ou para chamar os holofotes para ele convidou a imprensa. Depois de toda a burocracia aos olhos do povo cada família foi ao cemitério enterrar os restos mortais de suas filhas.
A delegacia de homicídios designou alguns policiais para checar informações na vizinhança do povoado, inclusive na casa de Gina. Pelo tempo do ocorrido, casos como esses demoram a ser desvendados com clareza. A polícia cumpre seu itinerário de rotina.
No dia seguinte Júlio faz o que o pai ordenou e começa a por em prática. Contrata homens para fazer o serviço pesado e administra tudo.

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