sábado, 11 de janeiro de 2020

CRIATURAS - I - Continuação



        Ao amanhecer, o sol timidamente surge por trás das nuvens e clareia deixando visível os estragos da tempestade. Galhos quebrados e árvores partidas ao meio pela fúria dos raios. As águas escorreram para o riacho, mas a terra molhada impossibilita os animais rastejantes de se locomoverem. Borboletas coloridas saem dos casulos para apreciar a liberdade. Os pássaros voam e pousam em galhos mais altos, e cantam na copa das árvores. As flores agora transformam a paisagem em paraíso.

         Vinte e quatro horas se passaram depois daquele tiro de rifle.

         Ainda muito cedo nesta manhã, um homem alto, usando um chapéu de maça, trajando calça jeans, camisa xadrez de mangas longas, cachecol no pescoço, barba por fazer e de olhos azuis bem arregalados, embrenha-se pela floresta que conhecesse como a palma da sua mão. Ele carrega um rifle com mira de longo alcance, porém, a arma é carregada com dardos tranquilizantes. Depois de muito caminhar, para, aguça a audição, tenta diferenciar os sons e fareja como um lobo o rastro de sangue deixado pela fera nas folhagens. A mente racional procura o motivo da lógica e encontra após um quilômetro, o cadáver com a marca das garras da fera do lado esquerdo do corpo caído, quase engolido pela lama fina arrastada pela correnteza das águas da chuva. As costelas e o tórax da vítima estão dilacerados e as pontas das unhas do animal cortou parte do coração como se fosse uma lâmina de estilete na manteiga. O homem apanha do chão o rifle do caçador, põe a tiracolo, retira a munição dos bolsos da vítima e deixa para trás o que ele mais queria: o coração intacto, mesmo que já estivesse morto.

         Olhando a linha do horizonte, onde está a cidade, e até onde a vista alcança não dá para ver a torre da igreja, o ponto de referência mais alto. Uma cortina de fumaça provocada pela neblina impede essa visão.

         Distante dali, a porta se abre e David Emanuel entra. A casa aparentemente é uma residência normal construída no estilo colonial de muito bom gosto, está alicerçada em uma grande propriedade e em seu interior há no subsolo um porão com paredes impenetráveis que serve como laboratório científico e é mantido em sigilo para quem o visitar. Distante da cidade alguns poucos quilômetros a casa tem um ar de castelo mal assombrado em sua arquitetura. Pouquíssimas pessoas vão ali, a não ser que tenham um compromisso muito sério com o Dr. David. Na sala de estar há animais e aves de muitas espécies, empalhados, fixos nas paredes. Colunas de mármore seguram o teto de onde desce um castiçal folheada a prata. No piso de cerâmica antiga bem lustrada uma pele de urso marrom decora a lateral do grande sofá de couro e para completar, uma mesa de madeira de um metro por setenta centímetros com duas gavetas exibe algumas garrafas de licor, vinho e uísque.

         David Emanuel coloca o chapéu no cabide, pendura o rifle com dardos numa espécie de estante que ele mesmo fez e onde há outras armas de sua coleção, entre elas espadas e adagas. Depois desce até o porão e guarda o rifle e as munições que trouxe da floresta. Volta para a sala de estar, serve uma dose de sua bebida preferida, degusta, acende um charuto ao tempo que retira o cachecol e o coloca nos ombros do sofá e com a taça na mão esquerda, senta-se numa poltrona e põe-se a pensar por um longo tempo.
(...)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Criaturas



Criaturas

         Um tiro de rifle ecoa na floresta densa. Os pássaros assustados com o barulho voam para longe. Botas de couro indicam que, pelo tamanho das pegadas do indivíduo, é um homem grande que caminha para apanhar sua presa – um veado - a aproximadamente cinquenta metros de onde ele estava.

Há lugares desconhecidos em que não se deve caçar, mesmo assim, o ser humano tem o péssimo hábito de não respeitar limites, de invadir até mesmo a privacidade da natureza. Pouco tempo depois de colocar o animal sobre os ombros, o homem rasga o silêncio e solta um grito doloroso de horror e em seguida ouve-se o baque do corpo que tomba sem vida.

         O celular toca três vezes no bolso do caçador e desliga. Não há ninguém para atender...

         A noite chega e com ela a névoa encobre a paisagem florestal. A escuridão é total. Em algum ponto distante se percebe os olhos amarelos da coruja cinza, que agasalha seus filhotes sob as asas no oco do tronco da árvore. Os sapos saltitam de um lado para outro, por instinto eles sabem que logo irá chover. Animais silvestres de pequeno porte também correm à procura de locas, esconderijos que os protejam. Até as cobras e outros répteis tem medo de enxurradas. E sem mais nem menos, o céu desaba com raios, trovões e chuva torrencial. Além dos trovões, uivos horripilantes que provavelmente não seja natural desse habitat.

         A noite e a natureza guardam seus mistérios.

Continua

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O Corvo Contra-ataca - II



O Corvo Contra-ataca – 2 – continuação

–– Prefeito! É uma honra recebê-lo! – cumprimenta Jônatas sorridente.
–– A honra é minha! Você com certeza ajudará nossa administração criando muitos empregos para essa população!
–– Claro! Claro! O Senhor é um homem de visão política que sabe calar seus adversários!
–– Diga-me, quantos empregos diretos seu grupo empresarial vai gerar em pouco tempo! – indaga curioso o prefeito.
–– Bom, pelo menos 500, com terraplanagem, pesquisas, construção e mão de obra especializada. Depois, na continuação, mais mil na construção civil. Mas vamos depender muito do Senhor.
–– E em que posso ajudar nesse empreendimento tão grandioso?
–– Comece desapropriando essa pobreza que está atrasada com IPTU e colaborando com nossos advogados quando forem procurar a prefeitura para resolver os casos provenientes dessas ações. Ou seja, basta colaborar com tudo e fechar os olhos para o que vamos fazer! Construa um conjunto habitacional para esse povo. Coloco minha construtora a sua disposição, ganho a licitação e fica tudo bem. É assim que uma mão lava a outra. Entendeu?
–– Mas Jônatas, esse povo são meus eleitores! Esse é o povo que vota em mim!
–– Prefeito, preste atenção, nós somos o futuro dessa cidade, desse estado, dessa nação e sem os ricos você não se elege a nada. Nem a fiscal de quarteirão!
–– O povo é quem decide! O povo é soberano!
–– Porra nenhuma, prefeito! Quem decide o poder são os poderosos!
–– Jônatas, você desrespeita a soberania, a democracia!
–– Prefeito, não há nada que o dinheiro não compre! Há?
–– Bem, eu quero ser deputado e depois governador, ou senador. Isso está em seus planos?
–– Vamos começar com um apartamento na cobertura! Escolha em qual torre você quer, por favor! Não precisa me dar um nome agora para passar a escritura. Depois, você facilita tudo, e eu banco sua campanha num caixa 2. Concorda?
–– Preciso abrir uma conta fora do país urgente!
–– Pois faça isso e diga-me quanto custa cada vereador para que eu possa depositar o dinheiro!
–– Você não entende de política! Preciso primeiro do apoio de deputados! De uma base sólida! Fazer conchavos e isso não é sua especialidade!
–– Não! Não é! Sou capitalista! Pois diga seu preço!
–– Preciso de uma semana ou pouco mais de quinze dias para formar uma bancada de cima para baixo e não o contrário.
–– Você tem dez dias! E será um excelente governador!
–– Começou a falar minha língua!
–– Não sou poliglota, mas falo alguns idiomas! Dez dias prefeito! Dez dias! Faça acontecer!
–– Quero lojas no shopping e participação no Cassino Riviera. Passo a lista depois! Fechado?
–– Fechado! Mas sem participação no Cassino!
–– Por quê?
–– Por que primeiro quero ver sua boa vontade no investimento!
–– Ok! No que depender de mim, liberarei o que for necessário! Alvarás e documentos pertinentes!
–– Excelente! Fique à vontade para um drink!
–– Claro! Obrigado!
–– Prefeito, se o senhor não se importar, irei atender ao governador que está ali com a comitiva de deputados!
–– Fique à vontade Jônatas! Eu já estou de saída!
–– Não! Não! Fique mais um pouco! Você é importante e tenho muita estima pelo senhor!
–– Está bem! – o prefeito vira-se para um assessor e diz – esse é o homem mais maquiavélico que eu conheço, te abraça como uma serpente, te beija e diz que te ama. Mas te suga até a última gota.
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quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O Corvo Contra-ataca -1



O Corvo Contra-ataca – 1 – continuação

–– Senhoras e senhores! Tenho a honra e a satisfação de apresentar-lhes o mais arrojado e o maior empreendimento imobiliário do mercado. Todos vocês que pretendem ter retorno econômico e financeiro em médio e longo prazo estão diante do futuro. Aqui não há concorrência e nenhuma moeda ou título superará os ativos investidos. Dominaremos metade da cidade e posteriormente seremos absolutos. Mas para isso acontecer com sucesso, é preciso que comprem os luxuosíssimos apartamentos ainda na planta para podermos dar continuidade ao projeto.  Garanto em nome de meu grupo empresarial que não haverá prejuízos para ninguém. Então, após assistirem ao filme em 3D produzido pela equipe da nossa agência de marketing e publicidade, mostrarei a maquete para livre escolha das unidades que satisfaçam seus anseios, enquanto será servido o coquetel. E para finalizar, quero deixar claro que, haverá já, já a abertura para aquisição dos lotes de ações do shopping. Para o nosso “Cassino Riviera”, a escolha de sócios será feita de acordo com os investimentos de cada um no Shopping e nos apartamentos. Sejam muito bem vindos!  E obrigado pela atenção! Sintam-se em casa e fiquem à vontade para conversar com nossa  consultoria financeira!  – finaliza Jônatas que é aplaudido de pé.

Enquanto os convidados empresários e políticos observam atentamente o filme publicitário exibido no telão, Dorival, dono de uma indústria de alimentos, aproxima-se calmamente de Jônatas e toca em seu ombro falando em voz baixa.

–– Jônatas, meu caro amigo, para onde irão tantos pobres que moram nessa favela?
–– Dorival, meu caro amigo, para o buraco de onde vieram! Quem não tem poder aquisitivo, não poderá sequer chegar perto de tamanho empreendimento! Luxo é para os ricos!
–– Você é muito corajoso! É destemido! Porém, toda ação tem reação!
–– Você não aprova nosso projeto? Está comigo ou contra mim?
–– Não se trata de estar de um lado ou de outro! Estou alertando-o para uma possível revolta! Ah, eu estou do lado dos lucros!
–– Então trate de fazer suas aquisições em apartamentos e ações. O meu investimento é de cinquenta por cento. Eu poderia bancar esse sonho futurista sozinho e ainda me sobraria dinheiro em várias contas!
–– Eu sei disso! E parabenizo-o!
–– Então, meu amigo, não perca tempo me aconselhando! Vá ver os folder’s, as plantas. Fale com nossos consultores e escolha logo seu investimento antes que acabe!
–– Farei isso! Desejo sucesso para nós e faço um brinde!
–– Um brinde! Amigo!
–– Israel Santana é um dos homes mais ricos do eixo Rio-São Paulo - dono de um conglomerado de empresas - e veio prestigiar o amigo por tão grande empreendimento.
–– Jônatas! Como você está?
–– Estou bem! Cheguei a pensar que você não viria!
–– Tive alguns contratempos! Mas aqui estou! Pretendo comprar uma torre inteira! Quero espaços de lojas no shopping e fazer parte do seu seleto grupo no “Cassino Riviera”!
–– Assim é que se fala! Você perdeu a apresentação do vídeo em 3D! – diz Jônatas.
–– Perdi nada! Sua assessoria é eficiente! Recebi por e-mail juntamente com o convite e é por isso que estou confiante e empolgado!
–– Venha! Vou lhe levar pessoalmente aos meus consultores de vendas para fecharmos esse negócio! – Jônatas fala empolgado ao amigo empreendedor.
–– Vamos!
–– Você ficará na cidade hoje?
–– Não posso! Vim exclusivamente para esse evento e voltarei logo mais à noite!
–– Eu entendo! Somos realmente muito ocupados! Bem, são doze torres de trinta andares a princípio, com espaço para mais doze. Um apartamento por andar. Veja aí qual lhe convém!
–– Certo! Vamos ver!
–– Israel! Responda-me! Você continua solteiro ou já se casou?
–– Quem precisa casar quando pode ter um harém?
–– Um homem tem que ter uma mulher para ter uma família descente e herdeiros.
–– Olha quem fala! Herdeiros brigam para obter o que não trabalharam e chegam a se matar por isso! Não quero causar a morte de pessoa e tampouco de meus filhos!
–– Isso é desculpa de homem mulherengo! Chegará o dia em que se apaixonará perdidamente e se casará!
–– Se essa for a vontade de Deus! Quero ter filhos justos!
–– Israel Deus não deu ao homem a escolha do destino!
–– Talvez meu destino seja outro! Vamos ao que realmente interessa! Por favor!
–– Sim! É claro! Deixe-me lhe apresentar aos diretores financeiros do grupo! Eles são os melhores!

Após as apresentações e cumprimentos, os negócios são fechados e o dinheiro das compras é transferido online.

–– Isaura! A grande herdeira da família mais rica do centro-oeste do Brasil, dona das maiores fazenda de gado e exportadora de carne para várias partes do mundo! Quanta honra! – diz Jônatas, cumprimentando a senhora de olhos claros, de cabelos grisalhos  bem vestida. O perfume francês exala quase hipnotizando quem a rodeia, chamando para si a atenção.
–– É um prazer revê-lo, Jônatas! Vejo que tirou seu sonho do papel!
–– Sim! E quero muito que você faça parte dessa realidade futurista!
–– Claro! É para isso que estamos aqui! Para investir em negócios sólidos e bem planejados!
–– Muito bem! Vamos ver o que mais lhe interessa!
–– Estou encantada com todo esse projeto! Farei minha escolha!
–– Logo mais à noite teremos um jantar no salão nobre de nosso hotel e, como atração, um grande pianista internacional.  Espero que você esteja lá!
–– Com prazer! Agora vamos aos negócios!
–– Calma! Você não deixou nenhum filho chorando!
–– Claro que não! Meu filho mais novo já está formado em direito!
–– Que bom! Mais um advogado em seu grupo!
–– É. Ele é uma dádiva!
–– No jantar sortearei algo interessante para nossos cem convidados! É surpresa! Isaura dê-me licença, preciso falar com uma pessoa em particular! É o prefeito! Fique à vontade!
–– Pois não! Eu estou bem! Obrigada!
(...)


Carlos Holanda 

O Corvo Contra-ataca



O Corvo contra-ataca - 1

Jônatas é um milionário excêntrico. É investidor com visão futurística e ele decidiu mostrar aos seus associados e empreendedores um projeto audacioso: comprar um bairro inteiro da periferia para construir o maior shopping vertical da cidade. Mas não é só isso. Ele pretende transformar a área de favela em um bairro nobre. Em seus planos, a ideia inicial é erguer blocos de apartamentos de luxo simultaneamente. Para que tudo dê certo, primeiramente é preciso convencer os moradores a venderem suas casas humildes a preço de banana.

Jônatas contratou os melhores engenheiros e arquitetos que o dinheiro pode pagar. Também tem uma banca de advogados para tentar convencer as famílias a se retirarem amigavelmente, vendendo assim seus imóveis.

Nesse momento, Jônatas apresenta o projeto em 3D e em cima de uma grande mesa de mármore branco, na sala de reuniões, há uma maquete enorme onde se vê o condomínio de luxo e ao lado o shopping que será construído. É um projeto audacioso, com lojas de departamentos das grandes redes de varejo, parque temático, área de shows e eventos, praças de alimentação, estacionamento vertical e como âncora, um grande cassino na cobertura. Mas antes, ele terá que conseguir o terreno.

A população carente de ações sociais e do poder público não vê o empreendimento com bons olhos. Vê sim, como uma ameaça. Ali estão enraizadas histórias de seus ancestrais, de filhos e netos.
(...)


Carlos Holanda